Stalinistas-trotskistas
Gilvan Rocha(*)
Caros
companheiros,
Alguns apresentam, indevidamente, o
trotskismo como o oposto ao stalinismo e isso não é verdade. Outros chegam a
imaginar que o stalinismo foi arquivado, ou revogado, por iniciativa de Nikita Kruschev,
e isso também não é verdade.
Para que possamos entender de fato o
que é o stalinismo e o anti stalinismo, é necessário, como sempre ocorre, voltarmo-nos
para a História. Nos momentos precedentes à chamada Grande Guerra, 1912/13, deu-se
um embate entre duas proposições políticas. A primeira delas, assumida pelos
segmentos da burguesia imperialista, levantava a palavra de ordem de defesa da pátria. O segundo agrupamento
político, fiel aos princípios do socialismo revolucionário, defendia a posição
de que se devia evitar a guerra, mas, caso isso não fosse possível, deveria
transformar o conflito bélico em insurreições socialistas, de caráter
internacionalista, portanto.
No embate dessas duas proposições
políticas, a primeira delas, a defesa da
pátria, foi amplamente majoritária e a maior parte dos partidos operários
socialistas cederam ao nacionalismo burguês e se converteram em partidos social-patriotas. Dentro desse quadro
histórico é que ocorre a Revolução Russa, de 1917. Em um primeiro momento, houve
a chamada Revolução de Fevereiro. Essa revolução adveio do levante das massas
populares contra o tzarismo, contra a autocracia, e trazia as reivindicações
mais sentidas pelos trabalhadores. Esse processo insurrecional não teve
presença expressiva dos partidos políticos, então existentes, na sua condução. A
bem da verdade, entretanto, fizeram-se partícipes desse evento, os mencheviques
e os socialistas revolucionários sem, contudo, esse episódio ter perdido
caráter de espontaneidade. Da insurreição de fevereiro, decorreu um governo
provisório, que teria por objetivo processar o desmonte da autocracia e
implementar um programa de natureza democrático burguesa, pois essa era a
tarefa imediata que a História impunha.
Em um segundo momento, setores do
movimento socialista, que se opunham ao social-patriotismo e refutavam a tese
de defesa da pátria, buscavam
influenciar politicamente os organismos de massa, ou seja, os sovietes, para um
maior grau de radicalização daquele processo em andamento. Dentre as forças socialistas,
que repudiavam o social-patriotismo, estavam os bolcheviques, liderados por
Vladimir Lenine, os mencheviques internacionalistas, liderados por Julio Martov
e os socialistas revolucionários de esquerda.
Os bolcheviques, sob a direção de
Lenine, após tensas discussões internas, colocaram-se como defensores da tese
de que a Revolução de Fevereiro, de caráter democrático burguês, deveria
evoluir para a revolução socialista. Essa formulação era uma adesão à tese da
Revolução Permanente, cujo teor consistia em afirmar que os países
retardatários como Índia, China, Indonésia, Rússia, na realização de suas
revoluções democráticas burguesas, deviam desembocar na revolução socialista.
Na verdade, a proposta de revolução
socialista, na Rússia, em outubro, tinha cabimento, porém, ela só poderia se
efetivar caso fosse intimamente acoplada à revolução socialista em escala mundial.
O cenário político do pós-guerra não favorecia as perspectivas de vitória
socialista, muito pelo contrário, apresentava-se um cenário de extremas dificuldades,
em função do papel da Segunda Internacional Socialista, convertida ao
social-patriotismo. Mesmo assim, o partido bolchevique, irmanado com os
socialistas revolucionários de esquerda, urdiu um golpe de força e conseguiu empolgar
o poder. Nesse instante, outubro de 1917, as massas não se insurgiram, todo
golpe de força foi arquitetado sem o conhecimento dos trabalhadores que, após o
fato consumado, deram o seu aval, através do Congresso Pan Russo de sovietes, apesar
dos protestos dos que se opunham aquele tipo de encaminhamento político.
Em 1921, a Rússia, pobre e atrasada,
encontrava-se completamente em ruínas, depois de sete anos ininterruptos de
guerra, considerando-se os anos de guerra imperialista e os anos de guerra
civil. Esse quadro desesperador levou a que os dirigentes maiores do partido
bolchevique propusessem e aprovassem algumas medidas emergenciais para
enfrentar o quadro desolador em que se encontrava o país dos sovietes. Uma
dessas medidas foi a NEP – Nova Política Econômica, que passou a permitir
iniciativas de empreendedores privados, principalmente no campo, como forma de
estimular algum avanço no crescimento econômico. Ao lado de medidas
liberalizantes, frente à economia estatal, também se procederam parcerias com setores
do imperialismo, na exploração de minérios, na indústria madeireira e noutras
atividades. Concomitantemente a essas concessões de natureza econômica, foi
tomado um conjunto de resoluções de caráter político. Foram aprovadas medidas coercitivas.
Suprimiu-se o direito de tendência, logo, suprimiu-se o livre debate. Foi
imposto o partido único e a imprensa única. Para viabilizar essas medidas
coercitivas, foi criada a polícia política, os campos de concentração, as
execuções sumárias dos dissidentes, fossem eles de esquerda ou de direita.
Pretendia-se que tais medidas tivessem caráter transitório, na esperança de que
a revolução mundial se reanimasse e viesse em socorro dos soviéticos.
Merece destacar que as proposições
dessas medidas de exceção foram alvo de uma cerrada oposição de alguns
camaradas, em especial da Alexandra Kollontai, membro do Comitê Central do Partido.
É oportuno, também, que se diga que, no ano anterior, isto é, em 1920, foi
criada a Oposição Operária, com uma plataforma política que entrava em choque
com as diretrizes então assumidas pelo governo dos bolcheviques. Ressalte-se que,
no mesmo ano de 1920, houve várias greves operárias, greves proletárias, que
foram caluniadas e reprimidas drasticamente. Essa insatisfação do operariado,
dos trabalhadores, teve o seu ponto culminante com a insurreição do soviete de Kronstadt,
em 1921 e, nesse momento, ficou claro o uso da calúnia e da repressão ostensiva
aos insurretos. O soviete de Kronstadt, “pérola da revolução socialista”,
mereceu de Lenine e Trotsky a mais sórdida campanha caluniosa cabendo, a esse
último, ordenar o seu cerco militar e, diante da recusa dos insurretos em se
renderem, não titubeou em massacrá-los.
Em 1919, a toque de caixa, foi
criada, precariamente, uma nova internacional, a então chamada Terceira Internacional
Comunista. O objetivo dessa iniciativa seria de criar um instrumento capaz de
alavancar a revolução mundial. Nesse mesmo ano, Vladimir Lenine pronunciou a
seguinte sentença: “ou a revolução mundial avança ou pereceremos”. Cabe, então,
uma reflexão: a revolução mundial avançou ou sofreu uma acachapante derrota? A
resposta é clara: a contrarrevolução
venceu e a URSS pereceu. Isso ocorreu porque a nascente URSS tinha, diante de
si, a tarefa inarredável de promover as medidas próprias da revolução
democrática burguesa.
Em outras palavras, colocavam-se
diante dos dirigentes da URSS as tarefas de promover a industrialização, uma
reforma agrária radical, a construção de obras infra-estruturais e outras
tantas medidas necessárias para a edificação do capitalismo. Tudo isso foi
feito a um altíssimo custo social e, sobretudo, político. A coletivização forçada
no campo foi o caminho buscado para viabilizar uma prática agrícola mecanizada,
em contraposição à agricultura semi-feudal, então existente. A industrialização
exigia capital acumulado e, na ausência dele, a solução era buscá-lo, através
da super exploração dos trabalhadores e, sobretudo, da expropriação de grãos,
que eram exportados em troca de máquinas, à custa da fome dos trabalhadores.
Deu-se, assim, a consumação do capitalismo de Estado, por sinal, com conquistas
muito aquém das apresentadas pelo capitalismo clássico. Nesse quesito, basta
que se veja o fato de que a Rússia está, hoje, na condição de país emergente,
compondo os BRICS.
Para atingir os objetivos propostos,
era preciso existir o estado policial,
fazia-se necessário o totalitarismo, o monolitismo levado até as últimas
consequências e, tudo isso, foi feito em nome do socialismo ou em nome do comunismo,
e aí reside a nossa grande infelicidade política.
Não faltaram advertências de que,
caso se insistisse em um voluntarismo desbragado, caso se insistisse em
atropelar as leis da história, tudo haveria de redundar em tragédia. E foi exatamente
isso o que aconteceu. Mas, diante desse quadro histórico, quais foram as
posições políticas, elucidativas, vindas à tona? Antes do X Congresso do PC
russo, em 1921, houve a Oposição Operária, que clamou por outros caminhos e não
só deixou de ser ouvida como foi perseguida, tanto por Lenine, quanto por Trotsky.
No Congresso citado, ou seja, no X Congresso do PC russo, pretendeu-se tomar
algumas medidas emergenciais, medidas de exceção, na esperança de se ganhar
tempo enquanto a revolução mundial se reanimasse. Porém, Lenine, o sacro-santo
e infalível dirigente, que havia dito, profeticamente: “ou a revolução mundial
avança ou pereceremos”, não levou a sério a sua própria profecia, quis forçar
as barras da História. Cabe, então, perguntar: por que ele não assumiu a
derrota, uma vez que ficou bastante evidente que não houve o avanço da
revolução socialista na Europa ocidental? Eis uma pergunta que merece resposta.
Após a morte de Vladimir Lenine, em
1924, as lutas internas, dentro do PC russo, tornaram-se mais agudas, sempre
recheadas de intrigas e calúnias. Essas lutas eram travadas nos corredores dos
palácios, agora ocupados pelos bolcheviques. Favorecido pela contrarrevolução,
o desfecho final desse processo foi a vitória de Joseph Stalin, que passou a
gozar de plenos poderes no Partido e, logo, de plenos poderes no aparelho do
Estado soviético. Essas ocorrências exigiam uma análise abalizada, que servisse
de ponto de partida para uma formulação política justa e consequente. Mas isso
não ocorreu.
A grande e triste verdade é que o
stalinismo se consolidou. Porém, vale frisar, com todas as letras, que esse
fenômeno político é produto direto da revolução mundial derrotada. Joseph
Stalin nada teve que inventar, tudo já existia: partido único, imprensa única,
polícia política, campos de concentração, execuções sumárias e, sobretudo, o
uso da mentira e da calúnia como instrumentos de disputa.
Não foi essa, entretanto, a análise
feita por Leon Trotsky. Supunha-se que a ele, pelo acúmulo teórico e pelo seu prestígio
político, é que caberia a tarefa de destrinchar, dissecar completamente, o que
era e o que passou a ser a URSS. Ao invés de uma análise marxista desse
processo, o sr. Trotsky enveredou pelo caminho do idealismo filosófico, com a
afirmação de que a revolução fora traída. Essa postura idealista, na abordagem
da Revolução Russa, fica bem clara quando o aludido senhor, em seu livro autobiográfico
Minha Vida, afirmou: “nunca imaginei que uma caçada de patos pudesse ter tantas
consequências históricas”. Imaginava, o ex-comandante do Exército Vermelho que,
caso chegasse em tempo para o féretro de Vladimir Lenine, poderia pegar na alça
do caixão e se apresentar como o seu legítimo herdeiro e, isso, era um crasso
erro, imperdoável para alguém que se regesse pelo materialismo histórico.
O stalinismo, meus caros, tem o seu
perfil próprio, é filho, como já foi dito, da derrota da revolução, e não produto
de cérebros doentios, conforme avaliação de Trotsky; afinal “o homem faz a História,
porém não a faz de acordo com a sua vontade”. O cerne do stalinismo, do ponto
de vista político, está na supressão real do direito de tendência, no
monolitismo e nos métodos de disputa e o sr. Trotsky não rompeu com as resoluções
do X Congresso. Ao invés de denunciar as resoluções transitórias, ele e seus
seguidores levaram e levam muito longe o monolitismo. Basta lembrarmos que existem,
no mundo, hoje, bem mais de uma centena de grupos, partidos e movimentos
trotskistas, trocando insultos e se excluindo mutuamente.
Como legítimos stalinistas, os trotskistas
não admitem o contraditório, não admitem a convivência democrática e, assim
sendo, os dissidentes só têm dois destinos: ou são destruídos, aniquilados; ou
retiram-se para participar de outro agrupamento, dentro do mesmo espírito e
modelo stalinista. Feitas essas colocações, acreditamos ter deixado em
evidência a natureza stalinista do trotskismo, ontem e hoje e, essa avaliação, nada
tem de pessoal.
Fortaleza,
17 de dezembro de 2013
(*) Gilvan Rocha é Presidente do CAEP
Centro de Atividades e Estudos Políticos
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