Mesmo os mais sensíveis e mais
atentos de nossa sociedade capitalista não escaparam da enganação, do logro
político, como haveremos de ter a oportunidade de ver no decorrer dessa nossa
exposição. Pois vejamos:
Lembro muito bem, quando aos 15 anos
de idade, fazendo a quarta série do então curso ginasial, fiquei deslumbrado
com os Iluministas representados pelo genial quarteto: Rousseau, Montesquieu,
Voltaire e Diderot. Do Voltaire, chamou-me profundamente
a atenção sua frase quando, referindo-se à Santa Madre Igreja Católica,
conclamou: “esmagai a infâmia”. Do mesmo admirável personagem, chamou-me,
também, a atenção uma frase a ele emputada, tomada emprestada de um velho abade
comunista: “A felicidade só poderá existir quando o último nobre for enforcado
nas vísceras do último clérigo”. Por seu turno, ainda tenho bem vivo na memória
o gesto de bravura assumido pelo Conde de Mirabeau, diante da guarda do Rei que
pretendia encerrar os trabalhos da Assembléia Constituinte, na França
revolucionária, desalojando os seus participantes, e ele, com toda altivez, descrita
pelo meu professor de história, teria dito ao comandante da guarda de sua
Majestade: “Ide e dizei ao Rei vosso amo, que aqui estamos pela vontade do
povo, e daqui não sairemos senão pelas forças das baionetas”.
Com que tristeza, anos depois, vim
tomar conhecimento de que o Conde de Mirabeau não passava de um canalha e,
nessa condição, vendeu-se ao Rei e passou a prestar-lhe serviços vendendo informações e fazendo uso de sua
soberba oratória, em favor do soberano.
Feitas essas digressões, partamos
para o que mais nos interessa, que é a tomada de consciência da verdade histórica
e essa tomada de consciência traz fortes doses de amarguras decorrentes das sucessivas
desilusões, face às fantasias que, em algum momento, cultivamos ou, na hipótese
muito mais grave, permanecemos acalentando, para o infortúnio do nosso destino,
seja pessoal, seja histórica.
Como dissemos de início, os mais
sensíveis, os mais preocupados em desvendar os mistérios da vida política, foram
vítimas, num primeiro momento, do grande engodo que a Revolução Francesa nos
deixou de herança. Já o seu formidável lema abalava as nossas entranhas
promovendo justas comoções: Igualdade, Liberdade e Fraternidade. Junto a esse
genial lema, dotado de tantas esperanças e promessas, seguiam-se todo um
discurso e propostas calcados em plenos valores humanitários. O valioso direito
de ir e vir, o voto universal, os direitos natos do homem, a proclamada
cidadania, o festejado Estado Democrático de Direito, eram elementos tão fortes
que ainda hoje alimentam os discursos proferidos por bacharéis e até por
políticos que se reclamam de esquerda. É inegável o caráter progressista do
discurso burguês lastreado nos grandes Iluministas que traduzia as promessas do
novo mundo capitalista, naquela ocasião. Eram progressistas, ressalte-se, em
relação aos anos de trevas da Idade Média, e tão somente.
No século XIX começa a desabrochar
um novo discurso, esse sim, de caráter intrinsecamente humanista, pois se
propunha a denunciar o nascente capitalismo e a se opor peremptoriamente à
exploração do homem pelo homem. Nos seus primórdios, o discurso socialista
padecia de uma grande parcela de ingenuidade quando se apoiava numa apreciação
idealista da história e propunha a construção de uma sociedade igualitária como
produto de pactos provindos da tomada de consciência. Ao mesmo tempo apostavam
no testemunho, no exemplo de pequenas experiências igualitaristas como
instrumentos de persuasão capaz de abolir as iniquidades do capitalismo e
construir uma sociedade de irmãos.
Na esteira desse socialismo
idealista e ingênuo, nasceu um socialismo dotado de fundamento científico que
punha de lado o idealismo para se apoiar em premissas consistentes, fornecidas
pelo estágio de desenvolvimento da filosofia na Alemanha, da política na França
e da economia política na Inglaterra. Sob esse tripé: filosofia, economia e
política, brotou o socialismo científico, cujos mestres maiores, no seu
primeiro instante, foram Karl Marx e
Friedrich Engels, dentre outras talentosas figuras que contribuíram para
aplainar caminhos, como foram os casos de Ludwig Feuerbach, na filosofia e de Moses
Hess, nas suas várias formulações teóricas.
É oportuno revelar que Moses Hess,
foi o conversor de Friedrich Engels à causa comunista e foi dele que Karl Marx
tomou emprestada a afirmação de que a “religião é o ópio do povo”, isso porém é
outra história, servindo apenas para ressaltar que o comportamento beatificador
do stalinismo produziu muitos falsos “milagres”.
A partir desse momento de grandes
revelações teóricas, nova realidade se colocou perante a história. O velho
discurso dos Iluministas do século XVII e XVIII haveria de dar lugar aos novos pensadores
e militantes da causa da humanidade, os socialistas, que se pautavam pelos
princípios do saber científico. O novo discurso mereceu a adesão de grandes
figuras dotadas de relevantes talentos, porém, no confronto dramático, em
1912/13, entre o nacionalismo burguês e o internacionalismo proletário, base de
sustentação para o advento de uma nova ordem, aconteceu a acachapante vitória
do social-patriotismo e a mais dolorosa derrota da causa socialista, justamente
na Europa Ocidental, que seria o berço natural do socialismo tal como prenunciavam,
com toda justeza, Marx e Engels, juntos a uma legião de notáveis socialistas.
Esse fato extraordinariamente desastroso,
a derrota do socialismo na Europa Ocidental, mudou radicalmente o rumo da
história quando, a partir da vitória da Revolução Russa em 1917, pretendeu-se
virar o jogo, estimulando uma desejada ressurreição da revolução mundial
abatida. Esse propósito, entretanto, não se consumou, e então consolidou-se, em
escala mundial, o discurso social-patriota que substituiu o conceito de luta de
classes por uma pretensa contradição entre nações opressoras e nações oprimidas,
como eixo da história, dando margem ao fortalecimento do nacionalismo,
categoria política totalmente estranha ao ideário socialista, isso para sermos
generosos, condescendentes com uma posição política de tão prejudicial influência
tendo em vista os nossos propósitos revolucionários.
Os encantados, num primeiro momento,
com o discurso liberal-humanista da velha burguesia, buscaram, parte deles,
aderir ao discurso socialista e deu-se então um segundo momento histórico de
desbragada enganação. O socialismo revolucionário de Marx e Engels havia dado
lugar ao dogmatismo empreendido pelo stalinismo através da Academia de Ciências
da URSS e levado a todos os recantos do mundo pelos chamados Partidos Comunistas,
filiados à Terceira Internacional, cujo princípio maior passou a ser o de resguardar
os mesquinhos interesses da União Soviética, “pátria mãe” do socialismo, no
dizer da burocracia moscovita, mesmo que isso implicasse, como implicou, em
prejuízo ao avanço da revolução social.
O esteio, ou melhor, a linha mestra
do discurso “socialista” sob a sombra do stalinismo, consistia em dizer que
existiam dois mundos: um decadente, o mundo capitalista; o outro ascendente, o
mundo socialista. Com a queda do muro de Berlim esse discurso foi desmascarado
e a esquerda convencional, de matriz stalinista, ficou desprovida de discurso e
prostrou-se aos pés das academias burguesas fazendo delas um presumido centro
do saber político e isso é mais uma perversa distorção de graves consequências.
No decurso de nossa longa caminhada
histórica, viveu-se, pois, ora seguindo Moscou, ora seguindo Pequim, ora
seguindo Havana, o grande logro que representou o discurso stalinista dos dois
mundos. Uns poucos procuraram fugir dessa enganação e encontraram um discurso
de natureza idealista, que imputava os descaminhos da revolução socialista a
obra de traição de uma dúzia e meia de degenerados e esse discurso, também,
carecia de fundamento científico e resvalava para o mais puro idealismo, dando
relevância absoluta aos aspectos morais, atropelando as circunstâncias históricas
e o quadro da realidade objetiva que levou a revolução socialista na Rússia à
mais completa derrota seguida do maior processo de degradação, com cruéis consequências,
até os dias de hoje, para a humanidade.
Em síntese, podemos dizer que fomos
enganados quando acreditamos no discurso liberal-burguês. Fomos enganados
quando acreditamos no discurso dos dois mundos. Por fim, alguns de nós, fomos enganados
quando aceitamos o discurso idealista da revolução
traída, do Estado Operário degenerado e da revolução política que haveria
de depurá-lo. Observamos que se abateu sobre muitos, verdadeiros círculos de
ferro que nos confinaram na mais lapidar ignorância política, embora ela possa
ser poliglota e ungida, em muitos casos, pelos unguentos da erudição, hoje sob
os rótulos dos mestrandos, doutorandos, pós-doutorandos e
pós,pós,pós-doutorados, estuário da mediocridade e do charlatanismo. Tudo isso
se deu, apesar do empenho, da boa fé, da bravura, da tenacidade de muitos.
Triunfou a mentira e apoiada sobre ela, é que a burguesia, hoje, vive seu
momento áureo de hegemonia política, muito embora padeça de sucessivas crises
econômico-financeiras decorrentes de suas próprias contradições.
Cabe atentar para o fato de que,
muitas vezes, o apego afetivo aos credos, impossibilitou e tem impossibilitado
ter clara a verdade histórica. Basta de tanto logro, a história clama por
intervenções políticas conscientes e consequentes a serem levadas à prática, em
tempo hábil, de salvar a humanidade da tragédia total que o sistema capitalista
nos arrasta.
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