Essa expressão, fazer a lição de casa, corresponde dizer: cumprir com as obrigações
que nos são impostas por diversas vias, circunstâncias e conveniências.
A burguesia, enquanto classe social, fez e faz, competentemente, a lição de casa. No primeiro momento
histórico, ela buscou abrir caminhos para o seu fortalecimento e logo que
fortalecida, através do capitalismo mercantilista, soube estabelecer uma
aliança histórica em torno da implantação do absolutismo, condição básica para
o seu maior crescimento. Soube, ainda naquele momento, patrocinar as grandes
navegações e, através delas, de certa forma conquistar o “Novo Mundo” e
estabelecer contato com o Oriente.
Enriquecida, após muitos anos de atividade comercial e pelo incremento
das manufaturas, a burguesia tratou de conquistar novos patamares e galgar
melhores posições econômicas, sociais e políticas.
De forma brilhante, através dos seus intelectuais, conseguiu conceber um
projeto de nova sociedade tão bem, doutrinariamente,
desenvolvido pelos “iluministas”. Construídas as linhas mestra de um projeto econômico
e social de acordo com seus interesses, a burguesia ocupou-se em conspirar
contra a velha ordem feudal e buscou implementar insurreições que lhe levassem
ao poder político. Conquistado o poder, tratou de levar a cabo duas grandes
tarefas concomitantes: primeiro, consolidar esse poder; segundo, tornar
universal a nova ordem econômica, política e social, a ordem capitalista, tomando-se
a Revolução Francesa como referência. O comportamento inglês foi completamente diferente
no quesito “universalizar o capitalismo”. Os ingleses foram ferrenhos e ativos
inimigos da revolução burguesa na França.
É oportuno esclarecer que a caminhada evolutiva do capitalismo não se deu
de forma retilínea e antecipadamente planejada. Não! Na medida em que as questões
eram postas, a burguesia procurou responder satisfatoriamente aos seus
interesses imediatos e históricos.
No exemplo francês não houve um planejamento político, mas a elaboração antecipada
de um bem delineado projeto de uma nova ordem. Esse projeto, construído pelos
já citados iluministas, somado a outros fatores, deu à Revolução Francesa a
oportunidade de se tornar a revolução clássica burguesa.
Voltemos, porém, à nossa abordagem que, mesmo procurando ser didática,
não pretende atropelar a complexa realidade histórica, presumindo existir uma
linha reta sem os devidos percalços. Isso, jamais! A simplificação de que
lançamos mão, tem o objetivo único de estabelecer uma linha de raciocínio que
nos enseje entender o transcurso evolutivo da história, livres das idas e
vindas, dos ziguezagues e dos múltiplos acidentes e dramas.
Quando a burguesia chegou ao seu estágio superior de desenvolvimento, com
o imperialismo, ela teve que enfrentar
dois grandes problemas que lhes eram inerentes: tinha que enfrentar as suas
profundas contradições fazendo uso, em última instância, do confronto bélico,
tanto na Primeira como na Segunda Grande Guerra Mundial, para resolver, suas
pendências, mesmo com altos custos sociais. Outra tarefa vital para a burguesia
na sua fase imperialista, era derrotar o movimento socialista que propunha um
novo projeto de sociedade e a consequente desconstrução do capitalismo. Dessa segunda
tarefa, ela se desincumbiu impondo ao movimento socialista sua completa
descaracterização, levando-o ao social-patriotismo que ainda hoje perdura com
muita força.
Após essa espetacular derrota do movimento socialista, em 1912/13, veio
um segundo momento de confronto que vai de 1917 a 1923, quando uma nova leva
revolucionária se levanta e, mais uma vez, a burguesia lança mão de sua sagacidade
política no manejo dos meios que dispunha e consegue impor uma nova derrota ao
socialismo em dramáticos embates quando estava em jogo o destino imediato da
proposta revolucionária, particularmente o destino da URSS. Dessa segunda derrota
brotou um fenômeno histórico de gravíssimas consequências: o stalinismo.
É necessário ressaltar que fortes elementos causadores dessa nova derrota
têm suas raízes em 1912/13 quando vicejou no seio da esquerda social-democrata,
o social-patriotismo, que desarmou
politicamente a classe trabalhadora tornando-a presa fácil da contra-revolução.
O socialismo, enquanto projeto de nova sociedade, foi engessado pelo
stalinismo transformando a sua ciência em um amontoado de dogmas e os chamados
partidos comunistas em organizações de caráter social-patriota. Por sua vez, a
comunhão de interesses entre o imperialismo, capitaneado pela burguesia, e a
burocracia stalinista em evitar, a
qualquer custo, o avanço da revolução mundial, levou o movimento socialista
a uma situação de derrota quase absoluta e, consequentemente, permitiu que a burguesia
desfrutasse nos dias de hoje, um momento de inimaginável hegemonia.
Vejamos a grande ironia da história,
tão pródiga no seu mister. A burguesia foi revolucionária nos seus primórdios, logo,
progressista. Quando atingiu a fase imperialista, ela iniciou o seu processo de
crescente exaustão. Antes, tinha uma proposta e um discurso que interessavam a
maioria da humanidade; hoje, ela não dispõe de nenhum discurso que possa lançar
esperança de solução a problemas graves como: a miséria crescente, a violência,
a destruição da natureza e tantos outros, decorrentes de sua própria existência.
Enquanto isso, o socialismo detém como bandeira a única proposta capaz de
levar reais esperanças ao conjunto da humanidade. Isso é deveras irônico: uma
classe social como a burguesia, exaurida e sem discurso, é politicamente hegemônica.
Enquanto isso, a esquerda verdadeiramente socialista, está confinada em
pequenos guetos e quando ousa levantar a cabeça é perseguida pelos diversos
herdeiros de Stalin e pelas forças da burguesia.
A resposta para essa intrigante questão está no fato de que os noventa
anos de dominação stalinista e a aliança estabelecida por ela com o
imperialismo para sustar qualquer possibilidade de vitória da revolução
mundial, levantou barreiras quase intransponíveis à causa socialista.
A chamada esquerda “marxista-leninista” transformou-se em legiões de
militantes presos aos dogmas e substituindo o princípio da luta de classes pelo
obsceno “princípio” de nações opressoras versus nações oprimidas, dando respaldo
ao tão nefasto nacionalismo que contaminou gravemente essas legiões. O subproduto
desse desvio político/ideológico é o obtuso antiamericanismo, que ultrapassa às
raias do absurdo, quando vê, com mal dissimulada simpatia, o teocrático fascismo
iraniano, pelo simples fato dele, assim como a Síria e o Bin Laden, terem
posições anti-americanas, esquecendo o fato de que ser anti-americano não implica
em se ser anticapitalista, posição essa indispensável aos que pretendem a
emancipação humana.
Ora, a barreira imposta pelo conluio
imperialismo/stalinismo que nos reduziu a tão brutal situação de indigência
teórica, quando os dogmas substituíram os princípios e os militantes
tornaram-se beatos acríticos, só pode ser removida caso estejamos dispostos a
promover um profundo trabalho de auto-crítica, cortando na própria carne.
Essa tarefa, porém, requer um grau de coragem muito maior do que foi
demonstrado por muitos militantes de esquerda, mundo a fora, diante dos
cárceres, das torturas, da clandestinidade ou do exílio. A tarefa de demover a
barreira que nos foi imposta implica em dispormos a nos desfazer de deuses, mitos
e dogmas, construídos para inibir qualquer iniciativa ou posição que possam ser
consideradas heréticas, pois prevalecia e prevalece, nos mais diversos grupos
de viés stalinista, o catecismo inconteste e isso tem que ser superado.
Vale refletir sobre o fato de que a burguesia, como já dissemos, cumpriu
e cumpre o seu papel histórico. Hoje, esse papel é o de preservar a nau
capitalista flutuando, mesmo seriamente avariada, evitando o seu naufrágio.
Para os reais marxistas fica claro que se trata de uma tarefa impossível a
eternização do sistema sócio econômico vigente. Não é de bom alvitre, porém, que
o capitalismo sucumba, arrastando consigo a própria humanidade. Queremos o fim
do capitalismo, sim, mas ele só nos interessa na medida em que seja sucedido
pelo socialismo e nunca pela tragédia total.
Por seu turno, estamos convencidos de
que a tarefa, a lição de casa, da
esquerda socialista, seria impor reais derrotas à burguesia. No entanto, cabe
perguntar: Foi isso o que aconteceu na Espanha, em 1936? Na Alemanha, diante da
ascensão do nazismo hitlerista? No Brasil, quando do golpe em 1964? No Chile de
Allende, em 1973? Na Indonésia de Sukarno, em 1965? Na China de Mao, que se
tornou, desde priscas eras, num estado policial, para depois desembocar no
capitalismo de estado? É justo que vivamos de migalhas, confundindo restritas
vitórias eleitorais, que em nada ameaçam o capitalismo, como se elas representassem
pungentes avanços? E o que dizer da gloriosa e heróica, “Guerra de Libertação Nacional”
vietnamita, onde hoje se exibe, em suas avenidas e estradas, propagandas de
empresas imperialistas, enquanto exporta para a China mão de obra barata? Por
fim, cabe indagar: a esquerda, por sua esmagadora maioria, fez ou faz a sua lição de casa?
Esses e tantos outros episódios que formariam uma lista quase infinda, demonstram
que a história do socialismo representou uma sucessão de derrotas políticas e ao invés de se procurar delas tirar os
necessários ensinamentos, preferiu-se e prefere-se o caminho irresponsável e
desvairado do triunfalismo totalmente infundado.
Os equívocos políticos, em suas mais diversas versões: o maoísmo, o fidelismo,
o kruschevismo e mesmo o extravagante nazi-fascismo, expressão exacerbada da
contra-revolução, produziram e produzem grandes legiões de beatos, abnegados,
heróis e mártires. Esse fato não faz com que os equívocos deixem de sê-los e por
conta da qualidade moral dos seus devotados militantes devam ser tratados com
generosidade, aquiescência.
É oportuno e necessário esclarecer que reconhecer as sucessivas derrotas do
movimento socialista, não implica em se ser derrotista. Implica em assumi-las e
buscar situar as suas verdadeiras causas, evitando suposições infundadas, do
tipo “revolução traída”, “revolução desfigurada”, no caso da URSS. Tratando-se do
Brasil, diante do golpe de 1964, devemos repelir a tese de que: “o golpe nasceu
em Washington”. Isso corresponde dizer, com certo acento nacionalista, ter sido
a causa da nossa derrota naquele momento o comportamento reprovável do inimigo
que “rasgou a constituição e atropelou a legalidade”. Inimigos não traem, essa
deveria ser uma lição elementar. Imputar ao inimigo a causa de nossa derrota é
fugir da necessária auto-crítica, é deixar de assumir as nossas
responsabilidades.
Expurgar o idealismo filosófico, o triunfalismo, as fantasias, as
ilusões, o seguidismo acrítico, a veneração religiosa, os preconceitos, as
práticas caluniosas e outras tantas manifestações de rebaixamento político e
ideológico é uma tarefa urgentíssima e, só procedendo dessa forma, seremos
capazes de romper o círculo de ferro
político-ideológico imposto pelo conluio imperialismo/stalinismo.
Pretendemos, como temos feito, apontar o que para nós parece ser a saída.
Trata-se de empreender esforços para responder de forma abalizada ao seguinte questionamento
que, embora parcialmente respondido, persiste: o que nos cabe fazer? A resposta
seria: devemos lutar para construir outra esquerda, disposta a restabelecer a livre
discussão, sepultada que foi de forma brutal a partir de 1921, quando, no X
Congresso do Partido Comunista da URSS, por proposta de Lênin e Trotsky, que
pretendia ser uma medida transitória, foi suprimido o direito de tendência e
instituído o monolitismo que se tornou universal por conta do papel assumido
pela Terceira Internacional, ao corromper-se, o que ocorreu um pouco depois de
sua fundação.
Estamos convencidos de que sem a construção dessa outra esquerda,
desfeita de suas marcas direitistas ou direitosas, não será possível sair dessa
situação de profunda derrota a que fomos submetidos.
Em outras palavras, diríamos: a construção de outra esquerda calcada nos
princípios do socialismo científico, construídos por Marx, Engels, Plekhànov,
Lênin, Rosa, Trotsky, Martov, Kautsky, Labriola, Franz Mehring e poucos outros
próceres, é a tarefa que se impõe, e
buscar cumpri-la é fazer a lição de casa.
Isso é necessário, caso levemos em consideração o fato de que o
socialismo é apenas uma possibilidade e nunca uma fatalidade imposta pelas
contradições do capitalismo tão aguçadas presentemente.
O socialismo, para se impor como saída para o nosso impasse histórico, precisa
ter força para fazê-lo e, assim, fica evidente a necessidade de apressar os
passos uma vez que estamos diante da célere marcha do sistema vigente para o
colapso.
Os fatos conflituosos da nossa realidade global estão continuamente em
marcha, pouco importando se despertarmos ou não, em tempo, historicamente hábil,
para intervir evitando a grande tragédia, qual seja: a destruição da vida.
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