Lula. Um grande retrocesso


Difícil, quase impossível, estabelecer uma discussão de caráter religioso diante de um público formado por beatos e beatas. Opor-se às crendices e fantasias próprias das religiões é visto como uma heresia digna do fogo eterno. Aliás, pelo simples fato do Sr. Galileu Galilei ter afirmado que a Terra se movia, quase foi atirado à fogueira da Santa Inquisição, uma vez que essa afirmação contrariava, frontalmente, o que estava posto no livro sagrado, onde é dito, textualmente, que Josué promoveu o “milagre” de parar o sol por três dias.
A tese de Galileu punha por terra esse milagre uma vez que o sol nunca se moveu como pretendia o “infalível” livro sagrado. Chegar-se ao extremo de dizer que Deus não existe, a esse público de beatos e beatas, seria provocar profundas reações e gestos de persignações para protegê-los contra tão “absurda heresia”.
Não são somente os crédulos de diversas religiões, os fanáticos e fundamentalistas, que são capazes de sacrificar a própria vida como fazem os islâmicos sectários e outrora fizeram os mártires cristãos. Na política também vamos encontrar legiões e legiões de beatos, de fanáticos, capazes de grandes sacrifícios em torno dos seus credos, porém, incapazes de cometer a “heresia” de pôr as suas “convicções” em dúvida.
Não foi à toa que Nietzsche disse: a convicção é mais grave do que a própria mentira. Enquanto isso, o pensador socialista Karl Marx nos legou a afirmação de que a dúvida é o principio da sabedoria. Dessa forma, os credos, que impossibilitam os necessários questionamentos, são responsáveis por todo tipo de estreitezas no pensar.
O stalinismo, por exemplo, criou uma vasta legião de beatos, seguidores de credos completamente insustentáveis. De forma romântica, chegou-se a acreditar na existência de uma classe operária imune à corrupção e uma classe burguesa de degradados. A realidade tem demonstrado que o processo de degradação e corrupção, levado a cabo pelo sistema capitalista, tem atingido não só a classe burguesa como também ao tão festejado proletariado que se deixa corromper em troca do um fogão, de uma geladeira, de um som, de uma modesta casa, de um aparelho de televisão, de um automóvel, que o sistema capitalista lhe proporciona, ao mesmo tempo em que promove bons negócios e não esquece de fazer um eficiente trabalho de cooptação política dizendo: veja, o capitalismo é bom, e nos seus marcos poderemos progredir, basta acreditar.
A questão, porém, não se reduz somente ao citado credo quanto ao incorruptível proletariado. Outros tantos foram difundidos e amplamente propagandeados, embora não dispusessem do menor fundamento. Lemas do tipo: “o campo cercando a cidade” ou a “guerra popular e prolongada” agregou legiões e legiões de seguidores que se negavam a colocar em discussão esses postulados. Quando alguém, na época, ousadamente dizia: Mao Tse-Tung é apenas um sub-marxista confuciano que praticou os métodos e as concepções do stalinismo, era objetado com o seguinte argumento: “não sei, mas Mao Tse-Tung liderou uma das maiores revoluções socialistas no mundo e hoje é o maior líder de massa”.
Não se atentava para o fato inequívoco de que a “vitória” não isenta uma posição política de seus erros ou mesmo de suas extravagâncias como foi o caso do “vitorioso” Hitler e do seu tresloucado nazismo, expressão insana da contra-revolução extremada. E observe-se que Hitler foi vitorioso através dos votos lhe foram conferidos pelas massas populares, incluindo-se aí, o proletariado alemão.
Não eram apenas os devotos e beatos do stalinismo ortodoxo que se negavam a enxergar a realidade política e, por essa razão, cometer “convictamente” grandes erros. Veja-se a grande, ou mesmo imensa legião de beatos, seguidores do credo patrocinado pelo stalinismo kruchevista que propunha o chamado “caminho pacífico para o socialismo”, proposta essa que por ser inviável nos conduziu a inúmeras e desastrosas aventuras, destacando como exemplos o golpe de 1964, no Brasil; o golpe em 1965, na Indonésia de Sukarno e, o Chile de Allende, em 1973; depois dessas tragédias, decorrentes desses equívocos, o silêncio. Ou seja, a velha prática de colocar-se os seguidos e desastrosos insucessos para debaixo do tapete.
Considerando a história nesses últimos noventa anos de hegemonia do stalinismo através dos seus mais diferentes vieses, não podemos, a bem da verdade, deixar de assinalar que, o trotskismo floresceu como uma das vertentes desse stalinismo quando assumiu todos os defeitos e desvios do velho bolchevismo expressos: no monolitismo, no partido único, no ultra-centralismo, no culto à personalidade e na prática da distorção da história como arma política.
Não podemos, assim, deixar de registrar que, de fato, existiram dois Trotskys. O primeiro, o não bolchevique, que se revelou um dos maiores quadros do marxismo quando produziu, além de outros textos, a genial tese da revolução permanente e de ter criticado com veemência e fundamentação a equivocada concepção de partido de Lênin. O segundo Trotsky, aparece quando ele adere ao bolchevismo, em 1917. Para compensar a desconfiança que pesava sobre ele por sua condição de recém-convertido, empenhou-se em mostrar-se mais realista do que o rei, encampando e patrocinando uma política que, em última instância, estabeleceu as bases organizacionais para a consolidação do stalinismo. O segundo Trotsky empenhou-se em se mostrar um eterno leninista e isso não era verdade.
Derrotado pelo stalinismo ortodoxo, Trotsky tornou-se patrono da tese incorreta de que o stalinismo, ao invés de produto da derrota da revolução mundial, deu-se após a morte de Lênin por vias das maquinações, intrigas e golpes baixos perpetrados pela sinistra figura de Joseph Stalin. Esse raciocínio é de natureza estritamente moralista e como sabemos, o processo histórico é totalmente amoral. Em muitos episódios, a história bafeja canalhas, facínoras ou charlatães e em outros momentos, pune com cruel rigor personagens dotados de boa fé e portadores de conduta ilibada.
O trotskismo também produziu uma legião de beatos, pessoas acríticas, prontas a reverenciar a sua imagem e dispostas a defender o argumento de que se fosse Trotsky o sucessor de Lênin a história teria tomado outro rumo, e isso é super-valorizar o papel do indivíduo na história, desconhecendo que “o homem faz a sua história mas não a faz de acordo com sua vontade” princípio basilar do socialismo científico.
Feitas essa observações que avaliamos oportunas, pois tentam desconstruir essa tão milenar herança do seguidismo acrítico responsável por tantos e quantos equívocos e tragédias no transcurso da historia da humanidade, firmemos a necessária compreensão de que o movimento socialista tornou-se uma sucessão de incontáveis derrotas.
Tivemos a derrota da Comuna de Paris em 1871, e sobre ela, foi sabiamente dito que “os trabalhadores pretenderam tomar os céus de assalto”, ou seja, não existiam as condições objetivas para o advento do socialismo, naquele momento histórico.
Com o advento do imperialismo deram-se as chamadas condições objetivas para que do seu seio brotasse a revolução socialista. O imperialismo apresentou-se como a antessala da transformação social. Entretanto, essa transformação só poderá se dar através do embate político.
Os países da Europa Ocidental somavam maiores condições objetivas e de organização das massas trabalhadoras como pre-requisitos fundamentais para o advento de uma nova ordem econômica e social. Por essa razão, foi justamente nesses países que se travou o grande embate entre o projeto de insurreição socialista e o projeto imperialista de levar a cabo a guerra como meio de enfrentar as suas contradições.
Para fazer a guerra a burguesia precisava derrotar o discurso socialista e transformar os partidos operários em partidos social-patriotas e ela obteve pleno êxito nesse embate, e os velhos partidos socialistas sofreram um profundo processo de transmutação, tornando-se linhas auxiliares de diversos grupos burgueses.
A vitória da Revolução Russa, em 1917, liderada pelos bolcheviques, trouxe, como temos dito, exaustivamente, esperança de que esse processo de derrotas seria revertido, mas tal esperança durou pouco e a URSS, junto com a Terceira Internacional vieram a se converter nas maiores forças anti-socialistas do mundo e, a partir daí, sucederam-se as derrotas e hoje nos encontramos no momento mais profundo desse processo quando o imperialismo goza uma quase absoluta hegemonia. Quem hoje ameaça o imperialismo? O fascismo teocrático iraniano? O facínora Bin Laden? O Coronel Hugo Chávez com suas bravatas? Ora, todos eles estão possuídos de um anti-americanismo tacanho, mantendo larga distância do necessário anticapitalismo que não tem fronteiras e conservando esse nacionalismo pernicioso legado perverso do velho stalinismo que contaminou os partidos ditos comunistas e socialistas mundo a fora, deixando de lado o princípio da luta de classes.
A esquerda, desfigurada, indigente, social-patriota descambou para os estreitos limites do nacional-reformismo. Enveredou pela velha tese do socialismo evolucionário, ou seja, do caminho gradualista. Colocou na cesta do lixo o conceito de Estado e passou a corroborar com o discurso burguês de que o Estado é do povo, decorrendo daí a infame distorção estatista da esquerda, que termina por bradar a inverdade de que existe uma dicotomia entre o “público” e o privado, esquecendo, ou fingindo esquecer, que o Estado é de classe.
Escondem que o estado burguês é um instrumento a serviço da sustentação do capitalismo e as provas disso são cabais e infindas ressaltando-se, por ser bastante elucidante, a atitude recente dos ricos Estados burgueses que vieram em socorro dos banqueiros norte americanos injetando mais de um trilhão de dólares para salvar o sistema. Aqui, no Brasil, tivemos um exemplo menor quando foi criado o PROER, para injetar dinheiro “público” nos bancos nacionais e, assim, evitar uma crise em cadeia.
O socialismo evolucionário, gradualista, além de passar ao largo quanto à natureza do Estado, impinge a falsa idéia de que logrando colocar um ou outro companheiro na máquina estatal burguesa representa alguns passos rumo à gradual vitória de um projeto socialista. Imbuídos desse pensamento, não tendo clareza da diferença essencial entre governo e poder, ou melhor, imaginando que as conquistas de governos representam passos para a conquista do poder, empenharam-se em levar o grande líder metalúrgico Luis Inácio Lula da Silva à Presidência da República.
Porém, para lograr essa “vitória”, o nosso metalúrgico teve que deixar bem claro, através de sua famosa “Carta ao Povo Brasileiro” cujo destinatário real era a grande burguesia nacional e internacional, que ele, se eleito, haveria de respeitar os fundamentos da política financeira impostos pelo Plano Real vindo pelas mãos de Itamar Franco e FHC. Em outras palavras, ele deixou claro que a burguesia não necessitava temer, pois o leão era mansinho.
Dessa forma, Lula e seu partido tiveram que renunciar aos interesses históricos das classes trabalhadoras para se colocarem como instrumentos confiáveis e competentes a serviço dos interesses do sistema capitalista e isso eles fizeram de forma genial. O governo Lula cooptou uma massa de miseráveis através do “Bolsa Família” a custos módicos. Cooptou as centrais sindicais e estudantis por uma bagatela, caso comparemos as cifras das propinas aos altos lucros auferidos pelo capitalismo nacional e internacional. Transformou uma legião imensa de militantes, presumidamente de esquerda, em agentes remunerados a serviço do Estado, o que significa dizer, a serviço da burguesia.
Por essas e algumas outras razões, é que o nosso Luis Inácio Lula da Silva foi proclamado o “estadista do ano” pela cúpula do capitalismo internacional, em Copenhague. Foi por essa mesma razão que Barack Obama, liderança maior do capitalismo, aclamou Lula como: “o cara”.
Façamos empenho para que o lulismo não venha se tornar a versão brasileira do velho peronismo argentino. O peronismo argentino liquidou com o sindicalismo combativo, liquidou com a vida política na perspectiva da transformação e reduziu a Argentina a uma situação de permanente crise, sem que haja organizações socialistas de peso que apontem para uma política de transformação social. O peronismo reduziu a vida política a pó e esse mesmo perigo está prestes a ocorrer no Brasil, caso se consolide o lulismo, e o ultimo processo eleitoral deixou bem claro o completo rebaixamento ou mesmo a ausência, quase absoluta, da discussão política.
Acrescentamos, por julgar oportuno, que sendo o Estado burguês um instrumento a serviço do capitalismo, não caberá a nós, socialistas, administrá-lo. Administrar o estado burguês é tarefa histórica da classe burguesa e de seus políticos. Para os socialistas a missão que se coloca é outra: é a missão de denunciar o capitalismo, desconstruir os discursos enganosos da burguesia e da esquerda direitosa e implementar as lutas em busca da superação do capitalismo pelo socialismo, evitando a tragédia.
Não se imagine que se pode servir a dois senhores e quando Lula se apresenta como uma figura que serviu e serve simultaneamente a burguesia e aos trabalhadores ocorre que um dos dois lados está sendo enganado e, com toda certeza, não é a burguesia a vítima desse engodo.
Sabemos que as nossa colocações tendem a parecer heresias diante da imensa legião de beatos que até se esforçam em se manter enganados, fiéis à musiquinha que diz: “me engana que eu gosto”. Contudo, estamos convencidos de que somente a proclamação da verdade, a desconstrução do embuste, da fantasia, das ilusões será possível encontrarmos o caminho capaz de permitir que se evite seja a humanidade arrastada para a destruição da vida que o capitalismo, caso permaneça, nos conduzirá.
Assim sendo, cabe concluir o quanto o lulismo foi e é um atraso para a causa socialista, e mais será caso venha se consolidar, como veio a acontecer com o peronismo na Argentina, conforme fizemos referência.
Não nos passa despercebido que o momento histórico é outro, mas alertamos para o fato de que não se trata de diferenças essenciais, de diferenças de substância, mas, tão somente, de diferenças formais, de graus e, portanto, subalternas à realidade essencial, que permanece, nos seus fundamentos, igual àquelas vistas na Argentina e alhures, enquanto permanecer o capitalismo.
Reafirmamos. A vitória eleitoral de Lula, representou um grande retrocesso na medida em que fez valer para amplos setores de esquerda e para as massas populares, o discurso burguês de que o capitalismo é viável, se bem administrado. Isso é totalmente falso. Lula impôs um grande retrocesso à causa socialista quando corrompeu as centrais sindicais e estudantis, enquanto imobilizou os movimento populares, através de políticas assistencialistas que se prestam a oferecer migalhas aos povo, para assegurar a paz social necessária aos negócios do sistema. Em nome da governabilidade, Lula, que nunca houvera se aliado ao PMDB ideológico de Ulysses, Montoro, Mario Covas, Tancredo, estabeleceu uma íntima aliança como o PMDB fisiológico de Sarney, Barbalho, Calheiros, Romero Jucá e outros bandidos da chamada vida pública. Não bastasse, Lula acobertou vários episódios de corrupção e outras indecências praticados por eminentes figuras do seu partido. No seu nascedouro, o PT se dizia um partido que levaria adiante uma forma diferente de fazer política, entretanto, esse propósito não se confirmou na prática e o PT caiu na vala comum do oportunismo, da demagogia e do fisiologismo.
Não é, porém, a primeira vez na história que o capitalismo se utiliza de lideranças operárias para seus propósitos. O grande líder metalúrgico polonês, Lech Walesa, foi manipulado pelo grande capital, com as bênçãos papais, para liderar o movimento de pleno restabelecimento do capitalismo na Polônia. Walesa, como Lula, liderou movimentos grevistas em momentos de ditadura, tanto na Polônia como no Brasil. A burguesia, com certeza, haverá de construir um ou outro monumento em homenagem a essas tão prestáveis figuras, ou talvez, os releguem ao esquecimento o que seria um ato de cruel ingratidão.