Revolução Russa: Uma vitória mal sucedida



Gilvan Rocha*



Em função do processo histórico ter produzido a divisão da sociedade em classes e camadas sociais, deu-se a imprescindível necessidade da mentira histórica. A mentira não foi decorrência, portanto, da maldade do homem ou de uma presumida invenção do “demônio”. Isso não passaria de uma lenda como existem tantas outras. Ela, a mentira histórica, tornou-se um imperativo da realidade, uma determinação imposta pela desigualdade social, fruto natural de um processo de gestação. Ao contrário, a desigualdade social foi um parto longo e doloroso.

Com plena certeza, podemos afirmar que nada é mais distorcida, silenciada, escamoteada e perseguida do que a verdade histórica. Isso tem uma razão bastante simples de ser. Apesar de se tratar de algo tão exposto, ela não é vista facilmente. A história não pode ser percebida sem que seja pelos olhos de uma classe, camada social, castas ou grupos imbuídos de interesses nem sempre confessáveis, ou melhor, quase sempre inconfessáveis. Em função disso, a história tem sido alvo de múltiplos expedientes desonestos da parte dos interessados na manutenção dos seus naturais interesses econômicos e sociais sempre repudiado pela maioria, fosse ele o escravismo, o feudalismo, o capitalismo ou os estados-operários burocratizados, a serviço de castas interessadas na manutenção de sua bonança.

Os milhares de anos da humanidade, conhecidos como pré-história, desconheciam classes e camadas sociais e dessa forma inexistia completamente a mentira política, na medida em que ela só se presta para escamotear o poder de uma classe social sobre outra. Não existindo classes sociais, logo não existia a mentira política. Fazemos questão de repetir esse fato para que não possa sobrar nenhum tipo de dúvida quanto à natureza da mentira em si e a mentira política que envolve poder de classes e camadas sociais.

Os que pretendem a transformação da ordem econômica e social imposta, no caso, o capitalismo, haveriam de recorrer à verdade histórica com seus fartos e ricos episódios para deles retirar os ensinamentos necessários a fornecer luz sobre a nossa caminhada em busca de uma nova realidade social dotada de igualdade, justiça e paz.

Não fugiram dessa tarefa de elucidar o processo histórico, à luz da verdade, os luminares da causa socialista, em priscas eras, bem como outros bravos pensadores.

Baluartes da verdade científica, foram: Giordano Bruno, quando refutou os dogmas da Santa Madre Igreja. Galileu Galilei que afirmou ser o Sol o centro do nosso sistema planetário, e quase o jogaram na fogueira da Santa Inquisição, por cometer um sacrilégio, uma heresia. E olhe que a Santa Madre Igreja Católica nasceu sob a inspiração infalível do Divino Espírito Santo. Não é uma profunda desfaçatez?

Foram os alquimistas precursores da ciência química. Muitos deles foram atirados ao “bendito” fogo da eternidade para reparar seus pecados no pressuposto de que estariam cometendo bruxarias. Repara-se que eram eles, os guardiães da mentira, que estavam cometendo bruxarias.

Charles Darwin foi brutalmente perseguido pelas academias de ciências européias, até cair em profundo isolamento e prostração por defender a tese da Seleção Natural das Espécies, uma verdade que ia de encontro à mentira dos deuses. E a lista seria infinda, tantos foram os descalabros cometidos em nome da MENTIRA. Ainda hoje, mais do que ontem, têm-se o desplante de dizer que ela, a mentira, tem pernas curtas e frágeis! Trata-se de um discurso gigantescamente mentiroso. E quem o faz? A família, na sua santa ingenuidade; a escola como instituição calcada na inverdade; nas religiões, tutoras de todas as mentiras de natureza política e, por fim, a chamada grande mídia.

O pensador alemão, Friedrich Engels, na sua obra “A origem da família, da propriedade privada e do estado”, buscou, com extrema felicidade e completo êxito, apoiando-se no trabalho do insigne antropólogo norte americano L. Morgan, desvelar os fundamentos históricos geradores das instituições família, propriedade e estado, pilares da sociedade dividida em classes e camadas sociais.

A onda revolucionária na França, na década de quarenta do século XIX, foi alvo de valorosos estudos que se tornaram alguns deles clássicos da literatura socialista. Por sua vez, a Comuna de Paris de 1871 foi estudada até a exaustão pela imensa maioria dos socialistas daquela época na busca dos imprescindíveis ensinamentos, sempre valiosos para orientar o comportamento político dos revolucionários em episódios vindouros, de que foi exemplo a obra de Karl Marx, “Guerra Civil na França”.

Foi de muito saber e bravura a frase popularizada por ocasião da Revolução Francesa e atribuída indevidamente a Voltaire, que só existiria felicidade no mundo quando o último clérigo fosse enforcado nas tripas do último nobre. Isso era dito popularmente e aceito porque essas classes sociais, nobreza e clero, representavam as classes que extorquiam o povo.

Depois da Revolução Francesa, em 1789, ou seja, a revolução clássica burguesa que estendeu pelo mundo a sua influência através da tão esmerada e sólida literatura dos pensadores iluministas, ainda hoje, fonte de inspiração para tribunos, bacharéis e políticos retardatários, quando não vesgos, veio, então, a Revolução Russa que se tornou a segunda maior revolução social da história e nela bem haveríamos de colher ensinamentos valiosos para orientar a nossa militância nos dias de hoje. Pelo contrário, ela produziu a distorção, a lenda, a fraude, o triunfalismo e a fantasia, que podem ser resumidos numa única palavra: MENTIRA, espinha dorsal que mantém de pé o sistema de desigualdade ora vigente e que responde pelo nome de capitalismo.



E POR QUE ISSO?



Aconteceu uma retumbante tragédia histórica: a Revolução Russa que poderia ter sido um dos mais destacados episódios da revolução mundial, que acionaria a derrocada do capitalismo na sua fase última, o imperialismo, quando as condições materiais e humanas já estavam dadas para que acontecesse a transformação social, o advento do socialismo, tal não se deu. Ocorreu, entretanto, a derrota da revolução socialista na Europa Ocidental, muito mais aquinhoada, pois rica, tanto em condições materiais quanto em condições humanas, o que poderia ter levado avante um projeto socialista vitorioso. Enquanto isso, a velha Rússia tzarista, mergulhada no seu atraso e nos seus inúmeros agonizantes problemas, ficou isolada e nessa condição não pôde remover o quadro de derrota da revolução mundial. Representou, portanto, a Revolução Russa, uma vitória mal sucedida, isso para não usarmos uma linguagem excessivamente dura e um tanto áspera aos sensíveis corações dos idólatras.

Precisamos remover e destroçar a densa cortina que esconde toda a verdade sobre esse episódio histórico e camufla um amontoado de criminosas distorções, amparadas no prestígio da Revolução Russa, inicialmente vitoriosa, da qual usurpadores tipo: Stalin, Krushev, Molotov, Beria, Kirov, para não falarmos no psicopata do Camboja, Pol Pot, nem no contumaz sanguinário ditador da Coréia do Norte Kim Jong-Il, e outros de menor monta, que se diziam e se dizem legítimos e incontestes herdeiros da revolução socialista, falando, abusivamente, em nome de Marx, Engels e Lênin. Pelas mãos desses embusteiros de tão riquíssimas artimanhas, o episódio da Revolução Russa foi envolvido por uma grossa e quase impenetrável manta de deslavadas mentiras. Cabe-nos a hercúlea tarefa de tentar removê-la, isto é, caso haja tempo historicamente hábil para fazê-lo, isso porque não existe tempo definido para que cada coisa aconteça. Os eventos, de toda natureza, estão circunscritos dentro de um tempo e um espaço. Nada é eterno que não seja o movimento. Esperar que a humanidade desperte, em tempo para salvar a vida é ingenuidade dos menos avisados ou lorota dos debochados.

Avoquemos os primórdios do processo revolucionário na Rússia. Por influência da Revolução Francesa, deu-se um movimento conspirativo entre a jovem oficialidade russa, contra a ordem feudal tzarista. Esse movimento progrediu para uma conjuração e entrou para a história como “o decembrismo”, uma vez ter sido a trama conspirativa surpreendida pela repressão em dezembro de 1825, quando foi severamente reprimida. Tratava-se, evidentemente, de um evento político de inspiração burguesa cujo objetivo era implantar o capitalismo derrotando a velha ordem feudal e estabelecendo um Estado moderno, à altura dos países da Europa Ocidental.

À guisa de estabelecer um comparativo entre a influência mundial da Revolução Francesa e a da Revolução Russa, vamos nos ater aos seguidores inspirados na Revolução Francesa cujos postulados se fizeram e se fazem sentir no mundo inteiro: “o direito de ir e vir”, “o voto universal”, “a proclamação dos direitos humanos”, “a privação da liberdade sem culpa formada”, e a “sacrossanta” CIDADANIA que, politicamente, nos dias de hoje, nada quer dizer, isto é, uma manobra para promover a já tão profunda cegueira política.

Os “socialistas” de matriz stalinista ficaram desprovidos de discurso uma vez que, durante noventa anos reduziram-se à afirmação fraudulenta de que existiam dois mundos concorrentes e convivendo pacificamente. No primeiro mundo, o mundo socialista, por conta de uma avalanche de lendas e mentiras diziam que lá jorrava, leite e mel e imperava a justiça. Enquanto isso, o outro mundo, o demoníaco mundo capitalista, estava em franca derrocada e, mais dias menos dias, haveria de desabar. E acrescentavam: “a vinda do socialismo é tão certa como o pôr do sol”. Esses senhores “marxistas-leninistas-trotskistas”, confundiam, de forma honesta ou desonesta, o determinismo histórico com o fatalismo, demonstrando extremada ignorância sobre a mais elementar lei da dialética.

Já, no Haiti, proclamava-se precocemente a independência daquele país da tutela do colonialismo francês e isso por conta da explícita influência dos ideais daquela revolução, que encontrou as suas portas abertas na ilha caribenha castigada pelo mais impiedoso trabalho escravo.

Na China de 1910, Sun Yat-sem por influência dos ideários franceses conspirava pela instalação de uma república democrática burguesa.

Aqui no Brasil e pelas Américas, resplandeceu a estrela crescente dos girondinos e, mais ainda, dos jacobinos. Aqui, fizera-se presente na Conjuração Mineira, um punhado de intelectuais que empreendeu um processo conspirativo contra o colonialismo lusitano e dele tivemos o nosso mártir Joaquim José da Silva Xavier - Tiradentes. No entanto, não foi só na periferia do mundo que ocorreram movimentos e revoluções impulsionados pelo turbilhão francês.

Na Europa, em nome da Revolução Francesa, o General Napoleão Bonaparte, tido como um gênio militar, ergueu bem alto sua espada quebrando a espinha medular do velho regime feudal. É bom deixar claro que o gênio militar de Bonaparte só foi possível se expressar por conta do gigantismo que foi a Revolução Francesa.

Feitas essas considerações sobre a Revolução Francesa, falemos agora um tanto sobre a Revolução Russa. Logo após sua vitória ela entrou num processo rápido de degeneração. Empenhou-se em construir a Terceira Internacional, mas, já corrompida, em conluio com o imperialismo mundial, constituiu-se no maior dos bastiões da luta pela manutenção do capitalismo. Aliás, para sermos mais justos, estabeleceu-se uma “Santa Aliança” entre o poder do imperialismo, o poder da Santa Madre Igreja e o indispensável poder da burocracia soviética. Sem essa aliança, o capitalismo, certamente não haveria se mantido de pé.

Outro episódio contra-revolucionário perpetrado pela burocracia soviética, foi quando, apesar dos apelos dramáticos de Leon Trotsky, os soviéticos permitiram que germinasse e crescesse a planta mortífera do nazi-fascismo e esse fato não pode ser imputado apenas a um equívoco. Por trás desse “erro”, existia o interesse do Estado Soviético, “a mãe pátria do socialismo a quem nenhum sacrifício deveria ser poupado para mantê-lo de pé”, mesmo que representasse o seu minuto final. Dentro dessa lógica, a lógica capitalista dos negócios levados até as últimas consequências, disse muito bem o nosso pigmeu Chanceler brasileiro, Celso Amorim, na sua viagem às sanguinárias ditaduras africanas: negócios são negócios, política à parte. Dessa maneira, o mais tênue fio de decência descambou para os mares pútridos do mensalão, dos dólares na cueca, dos sanguessugas, do caso de Santo André, do caso do prefeito Toinho de Campinas e outras tantas “mutretas” e barbaridades. Assim sendo, podemos afirmar que na lógica do capitalismo, os princípios foram às favas.

Outro exemplo crucial foi o papel que jogou a Terceira Internacional stalinista quando de modo desbragado apunhalou a Revolução Espanhola pelas costas, dando testemunho de zelo aos compromissos stalinistas assumidos com Hitler, afinal, “negócios são negócios”, diz o nosso outrora Chanceler Celso Amorim.

Não bastasse esse crime hediondo, os russos vestiram seus soldados com fardas de soldados germânicos e determinaram que eles sequestrassem, torturassem e executassem uma das maiores lideranças da Espanha revolucionária, Andrés Nin, destacado dirigente do Partido Operário Unificado Marxista- POUM. Esse partido opunha-se ferozmente ao stalinismo e recebia fortes cutiladas de Trotsky e seus grupos, ora acusando-o de centrista ora de carreirista, ora de oportunista e de outros expedientes escusos. Essa é a forma consagrada do stalinismo fazer política e Trotsky não fugiu à regra, bastando citar o seu abrupto rompimento com o Victor Serge por este ter-lhe dirigido algumas críticas, afinal os grupos stalinistas têm os seus monstros sagrados.

Os crimes da Revolução Russa não estão limitados a esses espantosos episódios. Veja-se a guerra civil na Grécia, na década de 1940, cuja derrota deveu-se ao capacho stalinista Nikos Zachariádis. Veja-se, na mesma época, o papel conciliador e traidor do dirigente do PC italiano, Palmiro Togliatti que, obedecendo aos interesses de Moscou, apostou na democracia burguesa e deu as costas à insurreição proletária. Veja-se, no mesmo tempo, o exemplo da França quando a RESISTÊNCIA FRANCESA já havia praticamente tomado o poder político e foi forçada, pelos “comunistas e socialistas”, a devolver o governo ao direitista general De Gaulle, em nome da construção da república democrática burguesa. Cumpriu esse sinistro papel o dirigente stalinista Maurice Torrez.

Alusão também poder-se-ia fazer ao massacre de Kantão e Xangai, na China em 1927. Posteriormente, foram múltiplos e cruéis os desmandos e abusos praticados naquela República, que veio a se transformar num estado extremamente policial.

Não bastassem os exemplos dados pela Revolução Russa, estendendo seus tentáculos contra-revolucionários mundo afora, um deles se fez o maior de todos: o caminho pacífico para o socialismo, capitaneado por Nikita Krushev. Aqui no Brasil, essa aventura foi comandada pelo Sr. Luiz Carlos Prestes. No Chile, o caminho pacífico para o socialismo, essa grande fraude, esse enorme crime foi dirigido pelo todo poderoso chefe “comunista” Corvalan. Na Indonésia, o presidente eleito pelo caminho pacífico Sr. Sukarno, sob a orientação do Sr. Krushev, redundou numa aventura que custou mais de 500 mil mortos e disso ninguém fala. É a podridão da história sendo arrastada, como sempre, para debaixo do tapete, evitando aos ricos o mau-cheiro e ministrando doces e suaves perfumes para o deleite dos ricos.

Recorramos aos decembristas como o episódio mais interessante por estar ligado à Revolução Francesa. Esse movimento evoluiu desembocando na organização do Partido Socialista Revolucionário.

Na década de oitenta, do século XIX, pelas mãos de George Plekhànov, foi introduzido, na Rússia, o socialismo científico. Em razão dessa proeza, Plekhànov foi tido com justiça como “o pai do marxismo na Rússia”. Criaram-se, então, os chamados grupos de Emancipação do Trabalho voltados para o proletariado industrial. Por essa via, chegou-se à organização do Partido Operário Social Democrata Russo. Esse partido, de caráter marxista, além do próprio George Plekhànov, atraiu a adesão de vários intelectuais de grande quilate, valendo salientar os nomes de Vladimir Lênin, Leon Trotsky, Vera Zassúlitch, Julio Martov, P. Axelrod e outros personagens de grande valor quer intelectual ou moral.

No final de 1902, Vladimir Lênin tornou pública sua obra “O que fazer?”. Na verdade, essa obra propunha um modelo de partido cujas linhas mestras eram o ultra-centralismo e o conceito de revolucionários profissionais que não passariam de especialistas na arte de doutrinar, organizar e, sobretudo, conspirar. Essa proposta de partido assumida por Lênin, mereceu e é muito importante ressaltar esse fato, a oposição dos mais destacados marxistas da época, provados nas letras e nas lutas.

Isso mesmo! Contra a concepção leninista de partido levantaram-se com toda veemência, Rosa Luxemburgo, Leon Trotsky, assim como Julio Martov, Karl Kautsky e posteriormente, George Plekhànov, “o pai do marxismo na Rússia”, para citar apenas os mais proeminentes marxistas de então.

Vê-se com clareza que o stalinismo, esse filho bastardo do bolchevismo, conseguiu liquidar muito mais socialistas do que conseguiu fazê-lo Adolfo Hitler. Hitler foi, sem dúvida, mais sanguinário, mais violento e mais chocante. Porém, Josef Stalin, além de sanguinário conseguiu a grande proeza de transformar a ciência do socialismo em um amontoado de dogmas, que só se prestavam a servir aos seus interesses, ou seja, aos interesses da “pátria mãe”, pouco importando que o mundo fosse reduzido a pó.



Não seria de se perguntar por que, diante de tantos sábios militantes do socialismo, somente um era dono da sapiência divina capaz de encerrar toda e qualquer discussão?



A bem da justiça, o Sr. Lênin afirmou que o seu modelo de partido só se aplicaria à Rússia, logo não teria valor universal! E por que Vladimir Lênin e Leon Trotsky não denunciaram esse sinistro erro e usaram a Terceira Internacional para sacramentar o modelo leninista de partido? Não foi isso um crime, mesmo que não tenha sido premeditado? E por que Leon Trotsky não denunciou depois do “leite derramado” e do muito leite entornado e entornando através dos seus asseclas? Eis uma pergunta que merece resposta.

Há que se deixar claro que tanto Rosa quanto Trotsky foram proféticos quando disseram que o modelo leninista de partido levaria I-N-E-V-I-T-A-V-E-L-M-E-N-T-E a que o partido substituísse as massas, o comitê central substituísse o partido e uma “figura iluminada” deveria substituir o comitê central. Não foi isso exatamente o que aconteceu?

Dar-se-ia, como de fato ocorreu, o substituísmo, causando graves prejuízos, como bem indicam numerosos exemplos históricos. Podemos chegar a uma situação irreversível, caso não nos socorra uma súbita tomada de consciência, pouco importando se essa afirmação tem caráter apocalíptica ou catastrófica como costumam afirmar os sacripantas acadêmicos que se satisfazem em falar de si para si quando o justo seria vulgarizar o marxismo.

Uma pergunta aqui é mais do que oportuna: o inconteste acerto dessa profecia feita em relação ao modelo leninista de partido pelos mais qualificados militantes do movimento socialista, não deveria ter sido levado em conta e motivado uma bela reflexão? Não é importante ou mesmo fundamental responder essa questão?

Acrescente-se que Lênin, em sua polêmica com Rosa, afirmou que ela tinha razão nos seus argumentos, porém, no caso específico da Rússia autocrática, não haveria outro caminho senão aquele tipo de partido e daí tivemos duas gravíssimas consequências.

A primeira delas atinha-se ao fato de que um partido que substitui a massa torna-se seu tutor e isso confronta com o princípio socialista de que “a obra de libertação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”. Isto é, não existe partido libertador dos explorados e oprimidos e o modelo leninista de partido tinha um claro perfil libertador, portanto tutelar, conforme denúncia de Rosa Luxemburgo e de Leon Trotsky.

A outra grave consequência, nem por isso menos criminosa, é que um pretendido modelo particular, o modelo russo de partido, virou princípio universal, quando os chamados partidos comunistas encarnaram o modelo leninista, sobretudo por inspiração da Terceira Internacional construída em março de 1919 pelos bolcheviques vitoriosos.

A vitória da revolução bolchevique, não obstante a boa fé, heroísmo, tenacidade e abnegação de tantos, transformou-se na maior tragédia da história, na medida em que, isolada e afogada no extremo atraso da velha Rússia, permitiu florescer o fenômeno do stalinismo e esse fenômeno lançou suas garras a todos os recantos do universo desfigurando completamente o movimento socialista, até os dias de hoje, o que explica a ausência de um real movimento anticapitalista.

Na verdade, um crime quando não é cometido com a intenção de fazê-lo, ainda assim corre-se o risco de perpetrá-lo é menos grave do que o crime doloso, ou seja, com a intenção de praticá-lo. Já dissemos que, em favor de Leon Trotsky, Vladimir Lênin e outros bolcheviques, pesa a intenção de não praticá-lo e esse atenuante os diferencia qualitativamente das figuras de Joseph Stalin e outros facínoras do mesmo naipe. Diz um adágio popular: “de boas intenções o inferno está cheio”. E este adágio o nosso Vladimir Lênin tinha por hábito repeti-lo com muita frequência.

No trato da Revolução Russa, questão de vital importância, não podemos aceitar a visão distorcida, unilateral e criminosa que nos é dada sobre a história dessa revolução, ora de forma apologética, ora oferecendo críticas superficiais.

Os fundamentos do tão maléfico stalinismo já estavam dados muito bem antes de Stalin chegar ao poder. Eis uma questão muito séria e ela merece ser tratada com o maior rigor possível, pois, da real elucidação desse fenômeno histórico, poderemos ter olhos e ouvidos abertos para os verdadeiros fatos livres de lendas, mitos, crendices, apologias, fantasias, charlatanismo, ou seja, MENTIRA.

No X Congresso do Partido Comunista da URSS, em 1921, apesar dos apelos dramáticos de Alexandra Kollontai, contra a proposta de Lênin e Trotsky de suprimir o direito de tendência no Partido e instituir o Partido Único, sepultando dessa forma o livre debate e estabelecendo o monolitismo, foi dado um passo determinante para a construção e a consolidação do stalinismo. Poderíamos afirmar consumatum est, apesar de reconhecer que a derrota definitiva do socialismo significa a derrota definitiva da humanidade.

Existe a atenuante moral para Lênin e Trotsky e a maioria dos bolcheviques daquela ocasião, quando consideramos que eles pretendiam, ser essa resolução uma medida de exceção, portanto, uma medida transitória. O que era transitório, no entanto, tornou-se permanente, para desgraça da humanidade e assim a boa intenção não passou de um glorioso quadro exposto na parede. A tragédia, porém, já estava estabelecida.

Por considerar oportuno, indaguemos: por que escondem tão dramático e elucidativo episódio da história? Por que o Sr. Leon Trotsky, brilhante revolucionário, ao invés de gastar todo o seu tempo e sua energia revolucionária, para se mostrar “leninista desde criancinha”, não avocou o discurso profético de Alexandra Kollontai? Por que esse mesmo senhor não fez referência à Oposição Operária de 1920, preferindo caluniá-la e reprimi-la quando ela se deu? Por que o episódio do Levante de Kronstadt mereceu uma campanha caluniosa orquestrada por Lênin e Trotsky para justificar a sua repressão, e isso não foi posteriormente assumido em nome da verdade histórica? Vê-se que a história não é tão abundante em santos, mas não “necessitava” ser tão pródiga em larápios, charlatães, vigaristas, farsantes e, sobretudo, mentirosos.

O processo de derrota da Revolução Russa está intimamente ligado ao processo de derrota da Revolução Mundial e elas produziram, como já foi dito, o stalinismo. Para consolidar-se, o stalinismo teve que instituir toda uma metodologia e estabelecer conceitos e dogmas.

A primeira iniciativa foi canonizar Lênin e transformar seus escritos, incluindo-se aí os seus equívocos em obras sagradas. A canonização de Lênin levou a que toda apreciação da Revolução Russa tivesse como ponto de referência as suas posições que, de antemão, eram consideradas o supra-sumo da verdade, tanto na forma quanto no conteúdo. É preciso ter em conta que uma coisa é respeitar e admirar Vladimir Lênin e outra bem diferente é idolatrá-lo, como fez, por interesses subalternos, o stalinismo.

Uma legião imensa de revolucionários honestos foi ‘jogada na fogueira’, por terem divergido, num momento ou noutro, dessa então santificada figura. O mais emblemático dos casos foi o de Julio Martov, um bravo revolucionário transformado pela literatura “marxista-leninista” em agente do inimigo e por essa cruel campanha caluniosa morreu no ostracismo e na depressão. Foi justamente por essa razão que o sr. Leon Trotsky procurou podar suas inúmeras e bem fundadas divergências com Lênin para, assim, livrar-se da fornalha, coisa que o stalinismo ortodoxo não permitiu.

Outra manobra do stalinismo depois da “santificação” de Lênin, foi proclamar a infalibilidade do Partido, cuja expressão é: “o Partido nunca erra”. Dessa máxima apoderaram-se todos os partidos ditos “marxistas-leninistas” ou “marxistas-leninistas-trotskistas”.

O monolitismo, o partido libertador e infalível, o ultra-centralismo, a exclusão dos infiéis, a calúnia como método de disputa, a impiedosa distorção da história, são marcas indeléveis do stalinismo.

Os bolcheviques, mesmo que, involuntariamente, contribuíram para o nascimento e consolidação do stalinismo, esse triste fenômeno histórico, mais nocivo ainda do que foi a tenebrosa Santa Inquisição, pois ele teve força, em conluio com o imperialismo, de jogar a humanidade à beira da catástrofe por conta da subsistência do capitalismo exaurido, pronto a sacrificar a vida em nome de uma única moeda que possa tê-la como lucro, pois é o lucro a alma desse sistema e sem ele de nada vale existir.

Os equívocos do leninismo e do bolchevismo ficaram protegidos contra qualquer contestação. Reflitamos, porém: quem tinha razão quanto à natureza do partido? Rosa, Trotsky e Martov ou Lênin? Quem tinha razão, em 1921, Lênin e Trotsky, suprimindo o direito de tendência e instituindo o partido único, ou Alexandra Kollontai? Quem tinha razão? Martov, que afirmava ser tarefa da Revolução Russa as tarefas da revolução burguesa, ou Lênin que, como jogador de pôquer, apostou todas as suas fichas na vitória da revolução socialista na Europa e perdeu desastrosamente? Não se defende a tática de que só podemos jogar para ganhar, como pretendeu Eduardo Bernstein e seus atuais seguidores gradualistas que buscam o impossível jogo sem riscos. Devemos, entretanto, evitar a aventura mesmo que bem intencionada e heróica.

Por sua vez, não ficou evidente que a Revolução Russa de 1917, por razões óbvias, não cumpriu tarefas da revolução socialista, pois o socialismo não se constrói sobre a miséria e, muito menos em um só país? Não cumpriu ela, de modo bastante singular, tarefas da revolução burguesa, sobretudo com sua política agrária e a industrialização forçada? E tudo isso a que custo político e social?

Não seria Lênin, sempre disposto a acusar os que dele divergiam, de oportunistas, centristas, pequenos burgueses, quando não de traidores e renegados, um incorrigível voluntarista disposto a atropelar as leis da história e ela disposta a se vingar? Não é hora de pôr em discussão o comportamento romântico dos socialistas que presumiam ser o proletariado uma classe incorruptível, enquanto a burguesia sentia o singular “prazer de cornear-se entre si”? A história não se encarregou de mostrar que o proletariado, na hora mais crucial, ao invés de escolher o internacionalismo revolucionário, escolheu o nacionalismo burguês, isso nos mais avançados países capitalistas? Não é chegada a hora de colocar de lado os entulhos stalinistas desses últimos noventa anos e promover a busca da verdade histórica? Para tanto, não é indispensável nos desfazermos dos mitos, dos dogmas, das fantasias, dos preconceitos e das ilusões? Não é o momento de refutar a beatice acrítica para dar lugar à formação de uma militância capaz de ter a dúvida como princípio do saber?

Lamentavelmente, a “vitória” da Revolução Russa serviu para consolidar, do ponto de vista da história, o império da mentira, como produto da desigualdade social. De um lado a própria burguesia como sua maior beneficiária e de outra parte as castas burocráticas possuídas dos mesmos interesses, no que diz respeito à manutenção da ordem capitalista, fizeram com que esse império gozasse de grande robustez. É nosso dever revolucionário dinamitá-lo, não deixar pedra sobre pedra desse monumento da inverdade, mesmo que para isso tenhamos que parecer, aos olhos dos idólatras acríticos, perigosos hereges.

O stalinismo levou muito longe a máxima cristã que reza: “Quem não está comigo está contra mim” e assim, todo dissidente merece ser abatido, senão pela força explosiva e letal das armas, senão pela morte lenta dos campos de concentração, senão pela imensa agonia das câmaras de tortura, pelas pressões e cruéis campanhas de calúnia, difamação e isolamento, que levaram e levam tantos honrados militantes à depressão e ao suicídio. É necessário reverter esse quadro e caminhar pelas estradas e veredas, em busca da imprescindível lucidez como única alavanca capaz de nos conduzir à verdadeira emancipação da humanidade.







Janeiro de 2011