O fetiche da leitura

O fetiche da leitura


Gilvan Rocha



Todos que conhecem a nossa militância socialista sabem o quanto nos empenhamos em difundir a leitura. Trata-se de uma tarefa que fazemos sistematicamente há mais de meio século, espalhando fartamente a literatura socialista e incentivando a sua leitura. Isso implica dizer que não podemos ser acusados de descurar da sua importância. Não fazemos, porém, da leitura um fetiche. Não imaginamos que o simples ato de ler redunde, necessariamente, no aprender. Muitas das vezes, as leituras não levam o leitor à reflexão necessária, ao aprendizado pretendido pelo texto.

Para fundamentar a nossa colocação contra o fetiche da leitura, basta que recorramos a um exemplo histórico que tão bem demonstra o acerto de nossa afirmação: nos idos anos de 1847/48, foi escrito o famoso Manifesto Comunista que seria, como de fato foi, o divisor de águas entre o socialismo utópico de feição romântica e o socialismo científico. Essa obra contempla questões fundamentais do socialismo. Pois bem, com a vitória da contra-revolução, em escala mundial na década de 20 do século passado, surgiu e consolidou-se o stalinismo sob o carimbo do “marxismo-leninismo” para pesar de Karl Marx e Vladimir Lênin, caso fossem vivos, pois o chamado “marxismo-leninismo” constituiu-se num amontoado de dogmas e frontal negação do legado teórico deixado por essas duas formidáveis figuras.

Para ser mais claro, exploremos o caso do Manifesto Comunista. Lá está dito bem claramente que a história é a história da luta de classes. Ora, o “marxismo-leninismo” suprimiu esse princípio e elegeu uma fraude quando construiu o dogma: “nação opressora versus nação oprimida”, como motor da história e, consequentemente, da vida política. Chegaram até ao cúmulo de afirmar que o imperialismo, particularmente o ianque, era o inimigo principal, ou seja, a burguesia deixava de sê-lo, o que abria caminho para consolidar o nacionalismo e principalmente o antiamericanismo em escala mundial.

No mesmo citado documento histórico está dito: “O proletariado não tem pátria” e assim ressalta o caráter internacionalista da política pela construção do socialismo. Quando travou-se uma luta ferrenha entre o nacionalismo burguês, tão necessário para a efetivação da guerra imperialista e o internacionalismo proletário, venceu acachapadamente o nacionalismo burguês e os marxistas, regra geral, transformaram-se em reles social-patriotas, apesar de terem lido e relido o Manifesto Comunista.

Nesse mesmo Manifesto, tem escrito quase em letras garrafais: “a obra de libertação dos trabalhadores, será obra dos próprios trabalhadores”. Mesmo assim, o “marxismo-leninismo”, pregou e prega no mundo inteiro a construção de partidos e movimentos de caráter libertadores. Ora, trabalhadores “libertados” serão uma massa de tutelados e os tutores assumirão em seu nome plenos poderes e haverão de alijá-los conforme ocorreu tanto na URSS como em alguns outros países.

Apesar de estar dito na literatura socialista, da necessidade de se construir a ditadura do proletariado em substituição à ditadura da burguesia, não se viu em lugar nenhum do mundo o exercício do poder pelas mãos dos trabalhadores e ao invés disso tivemos estados policiais comandados pelos “marxistas-leninistas” inspirados no mais ferrenho monolitismo e na mais desbragada repressão.

Também está presente na literatura socialista produzida por Marx, Engels, Lênin, Trotsky, Plekhànov, Rosa, Franz Mehring, Martov, Kautsky e uns poucos outros, que não é a vontade, o querer, que determina os rumos da história. George Plekhànov, no seu livro “O Papel do Individuo na História”, ressalta que esse papel está subordinado às condições concretas da momento corrente. Não obstante tão claro princípio, formulado pelo próprio Karl Marx e declamado fartamente pelos “marxista-leninista-trotskistas”, chegam eles a imaginar que a historia teria tido outro rumo, caso Leon Trotsky tivesse chegado a tempo no enterro de Vladimir Lênin e tivesse ganho a disputa pelo controle do partido e do aparelho de estado e isso é um absurdo, considerando-se o quadro de derrota da revolução mundial.

Com esses poucos exemplos, acreditamos que tenha ficado claro que a leitura por si não produz necessariamente uma reflexão correta. Completamos noventa anos de stalinismo, completamos mais de setenta de “marxismo-leninismo-trotskismo” e, no entanto, os princípios reais do socialismo científico formulados de forma tão bem escrita, não impediram os descaminhos que nos levaram ao fundo do poço, em matéria de indigência teórica, como vivemos nos dias de hoje.

Seria extremamente sensato e proveitoso formular algumas perguntas. Por que a leitura do Manifesto Comunista não impediu que tantos e quantos enveredassem pelo caminho do social-patriotismo? Por que o princípio formulado por Marx e Engels de que a tarefa de libertação dos trabalhadores seria obra dos próprios trabalhadores não impediu que um número imenso de pessoas, após ter lido e relido esse grande documento histórico, que é o Manifesto, tenham defendido o modelo leninista de partido cujo viés blanquista levou e leva ao conceito de partido libertador? Por que, apesar do próprio Vladimir Lênin ter dito publicamente que o modelo de partido por ele proposto não tinha valor universal e se aplicava tão somente à Rússia tzarista, o modelo leninista foi transformado em princípio, ou seja, em verdade universal, através da Terceira Internacional Comunista, sem nenhum protesto, principalmente do senhor Trotsky e seus seguidores, isso para não falarmos do próprio Lênin?

Vemos, é necessário repetir, que as leituras não têm o poder, por si só, de impedir equívocos. A leitura é um caminho importantíssimo para o saber, mas o fundamental, aquilo que é mais do que importante, é o ato da reflexão, despido de posturas preconceituosas e acríticas.

É um grave erro imaginar que o livro é um instrumento sagrado e dele só podem emanar verdades. É um erro negar o papel pernicioso de tantas e quantas obras que induziram e induzem milhões e milhares de pessoas à ignorância real mesmo quando ela chega a ser ilustrada e se expressar com correição em vários idiomas.

Do ponto de vista dos verdadeiros marxistas não é intrigante que alguns estudiosos dispensem a maior parte os dias de suas vidas usando como instrumentos dezenas de línguas para estudarem o nada como fazem os teólogos? Nesse caso cabe mais uma pergunta: onde está o milagre da leitura em si, quando não acompanhada rigorosamente da reflexão, da crítica?

É necessário, pois, nos desfazermos do fetiche puro e simples do livro e mais ainda o fetiche da leitura, pois ela só produzirá efeitos válidos quando acompanhada do exercício da reflexão e sobretudo da dúvida.



15 de março de 2011