segunda-feira, 19 de novembro de 2012

FOMOS ENGANADOS






            Mesmo os mais sensíveis e mais atentos de nossa sociedade capitalista não escaparam da enganação, do logro político, como haveremos de ter a oportunidade de ver no decorrer dessa nossa exposição. Pois vejamos:
            Lembro muito bem, quando aos 15 anos de idade, fazendo a quarta série do então curso ginasial, fiquei deslumbrado com os Iluministas representados pelo genial quarteto: Rousseau, Montesquieu, Voltaire e Diderot. Do Voltaire, chamou-me profundamente a atenção sua frase quando, referindo-se à Santa Madre Igreja Católica, conclamou: “esmagai a infâmia”. Do mesmo admirável personagem, chamou-me, também, a atenção uma frase a ele emputada, tomada emprestada de um velho abade comunista: “A felicidade só poderá existir quando o último nobre for enforcado nas vísceras do último clérigo”. Por seu turno, ainda tenho bem vivo na memória o gesto de bravura assumido pelo Conde de Mirabeau, diante da guarda do Rei que pretendia encerrar os trabalhos da Assembléia Constituinte, na França revolucionária, desalojando os seus participantes, e ele, com toda altivez, descrita pelo meu professor de história, teria dito ao comandante da guarda de sua Majestade: “Ide e dizei ao Rei vosso amo, que aqui estamos pela vontade do povo, e daqui não sairemos senão pelas forças das baionetas”.
            Com que tristeza, anos depois, vim tomar conhecimento de que o Conde de Mirabeau não passava de um canalha e, nessa condição, vendeu-se ao Rei e passou a prestar-lhe serviços  vendendo informações e fazendo uso de sua soberba oratória, em favor do soberano.
            Feitas essas digressões, partamos para o que mais nos interessa, que é a tomada de consciência da verdade histórica e essa tomada de consciência traz fortes doses de amarguras decorrentes das sucessivas desilusões, face às fantasias que, em algum momento, cultivamos ou, na hipótese muito mais grave, permanecemos acalentando, para o infortúnio do nosso destino, seja pessoal, seja histórica.
            Como dissemos de início, os mais sensíveis, os mais preocupados em desvendar os mistérios da vida política, foram vítimas, num primeiro momento, do grande engodo que a Revolução Francesa nos deixou de herança. Já o seu formidável lema abalava as nossas entranhas promovendo justas comoções: Igualdade, Liberdade e Fraternidade. Junto a esse genial lema, dotado de tantas esperanças e promessas, seguiam-se todo um discurso e propostas calcados em plenos valores humanitários. O valioso direito de ir e vir, o voto universal, os direitos natos do homem, a proclamada cidadania, o festejado Estado Democrático de Direito, eram elementos tão fortes que ainda hoje alimentam os discursos proferidos por bacharéis e até por políticos que se reclamam de esquerda. É inegável o caráter progressista do discurso burguês lastreado nos grandes Iluministas que traduzia as promessas do novo mundo capitalista, naquela ocasião. Eram progressistas, ressalte-se, em relação aos anos de trevas da Idade Média, e tão somente.
            No século XIX começa a desabrochar um novo discurso, esse sim, de caráter intrinsecamente humanista, pois se propunha a denunciar o nascente capitalismo e a se opor peremptoriamente à exploração do homem pelo homem. Nos seus primórdios, o discurso socialista padecia de uma grande parcela de ingenuidade quando se apoiava numa apreciação idealista da história e propunha a construção de uma sociedade igualitária como produto de pactos provindos da tomada de consciência. Ao mesmo tempo apostavam no testemunho, no exemplo de pequenas experiências igualitaristas como instrumentos de persuasão capaz de abolir as iniquidades do capitalismo e construir uma sociedade de irmãos.
            Na esteira desse socialismo idealista e ingênuo, nasceu um socialismo dotado de fundamento científico que punha de lado o idealismo para se apoiar em premissas consistentes, fornecidas pelo estágio de desenvolvimento da filosofia na Alemanha, da política na França e da economia política na Inglaterra. Sob esse tripé: filosofia, economia e política, brotou o socialismo científico, cujos mestres maiores, no seu primeiro instante, foram Karl Marx e Friedrich Engels, dentre outras talentosas figuras que contribuíram para aplainar caminhos, como foram os casos de Ludwig Feuerbach, na filosofia e de Moses Hess, nas suas várias formulações teóricas.
            É oportuno revelar que Moses Hess, foi o conversor de Friedrich Engels à causa comunista e foi dele que Karl Marx tomou emprestada a afirmação de que a “religião é o ópio do povo”, isso porém é outra história, servindo apenas para ressaltar que o comportamento beatificador do stalinismo produziu muitos falsos “milagres”.
            A partir desse momento de grandes revelações teóricas, nova realidade se colocou perante a história. O velho discurso dos Iluministas do século XVII e XVIII haveria de dar lugar aos novos pensadores e militantes da causa da humanidade, os socialistas, que se pautavam pelos princípios do saber científico. O novo discurso mereceu a adesão de grandes figuras dotadas de relevantes talentos, porém, no confronto dramático, em 1912/13, entre o nacionalismo burguês e o internacionalismo proletário, base de sustentação para o advento de uma nova ordem, aconteceu a acachapante vitória do social-patriotismo e a mais dolorosa derrota da causa socialista, justamente na Europa Ocidental, que seria o berço natural do socialismo tal como prenunciavam, com toda justeza, Marx e Engels, juntos a uma legião de notáveis socialistas.
            Esse fato extraordinariamente desastroso, a derrota do socialismo na Europa Ocidental, mudou radicalmente o rumo da história quando, a partir da vitória da Revolução Russa em 1917, pretendeu-se virar o jogo, estimulando uma desejada ressurreição da revolução mundial abatida. Esse propósito, entretanto, não se consumou, e então consolidou-se, em escala mundial, o discurso social-patriota que substituiu o conceito de luta de classes por uma pretensa contradição entre nações opressoras e nações oprimidas, como eixo da história, dando margem ao fortalecimento do nacionalismo, categoria política totalmente estranha ao ideário socialista, isso para sermos generosos, condescendentes com uma posição política de tão prejudicial influência tendo em vista os nossos propósitos revolucionários.
            Os encantados, num primeiro momento, com o discurso liberal-humanista da velha burguesia, buscaram, parte deles, aderir ao discurso socialista e deu-se então um segundo momento histórico de desbragada enganação. O socialismo revolucionário de Marx e Engels havia dado lugar ao dogmatismo empreendido pelo stalinismo através da Academia de Ciências da URSS e levado a todos os recantos do mundo pelos chamados Partidos Comunistas, filiados à Terceira Internacional, cujo princípio maior passou a ser o de resguardar os mesquinhos interesses da União Soviética, “pátria mãe” do socialismo, no dizer da burocracia moscovita, mesmo que isso implicasse, como implicou, em prejuízo ao avanço da revolução social.
            O esteio, ou melhor, a linha mestra do discurso “socialista” sob a sombra do stalinismo, consistia em dizer que existiam dois mundos: um decadente, o mundo capitalista; o outro ascendente, o mundo socialista. Com a queda do muro de Berlim esse discurso foi desmascarado e a esquerda convencional, de matriz stalinista, ficou desprovida de discurso e prostrou-se aos pés das academias burguesas fazendo delas um presumido centro do saber político e isso é mais uma perversa distorção de graves consequências.
            No decurso de nossa longa caminhada histórica, viveu-se, pois, ora seguindo Moscou, ora seguindo Pequim, ora seguindo Havana, o grande logro que representou o discurso stalinista dos dois mundos. Uns poucos procuraram fugir dessa enganação e encontraram um discurso de natureza idealista, que imputava os descaminhos da revolução socialista a obra de traição de uma dúzia e meia de degenerados e esse discurso, também, carecia de fundamento científico e resvalava para o mais puro idealismo, dando relevância absoluta aos aspectos morais, atropelando as circunstâncias históricas e o quadro da realidade objetiva que levou a revolução socialista na Rússia à mais completa derrota seguida do maior processo de degradação, com cruéis consequências, até os dias de hoje, para a humanidade.
            Em síntese, podemos dizer que fomos enganados quando acreditamos no discurso liberal-burguês. Fomos enganados quando acreditamos no discurso dos dois mundos. Por fim, alguns de nós, fomos enganados quando aceitamos o discurso idealista da revolução traída, do Estado Operário degenerado e da revolução política que haveria de depurá-lo. Observamos que se abateu sobre muitos, verdadeiros círculos de ferro que nos confinaram na mais lapidar ignorância política, embora ela possa ser poliglota e ungida, em muitos casos, pelos unguentos da erudição, hoje sob os rótulos dos mestrandos, doutorandos, pós-doutorandos e pós,pós,pós-doutorados, estuário da mediocridade e do charlatanismo. Tudo isso se deu, apesar do empenho, da boa fé, da bravura, da tenacidade de muitos. Triunfou a mentira e apoiada sobre ela, é que a burguesia, hoje, vive seu momento áureo de hegemonia política, muito embora padeça de sucessivas crises econômico-financeiras decorrentes de suas próprias contradições.
            Cabe atentar para o fato de que, muitas vezes, o apego afetivo aos credos, impossibilitou e tem impossibilitado ter clara a verdade histórica. Basta de tanto logro, a história clama por intervenções políticas conscientes e consequentes a serem levadas à prática, em tempo hábil, de salvar a humanidade da tragédia total que o sistema capitalista nos arrasta.

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