“Pôr
a viola no saco”
O camarada Diego Ferreira parece-nos
dotado de boa vontade revolucionária. Entretanto, por razões compreensíveis,
não é dado ao trabalho de questionar, refletir, discutir e duvidar. Esse comportamento, próprio de seguidores
acríticos, costuma descambar para a raivosidade sobejamente antidemocrática.
Ele é produto da velha escola stalinista e stalinista-trotskista. Como bons
beatos de um credo, não admitem, minimamente, que se ponha dúvida em alguns
dogmas e, muito menos, que se critique figuras ungidas e sacramentadas.
Sendo
assim, Diego recomenda que eu, Gilvan Rocha, em criticando Trotsky, “ponha a
viola no saco” e vá cantar em outra freguesia. Aliás, para conhecimento de
todos, essa postura sempre foi assumida por mim, durante toda a minha
trajetória enquanto ser pensante.
A
primeira vez que isso me ocorreu foi aos doze anos de idade. Filho de uma
família católica, estudando em um colégio de orientação religiosa, certo dia
pus-me a pensar e colocar, em dúvida, as
“verdades” que me eram ditas. Nesse processo angustiante e traumático, cheguei
à conclusão de que não fora um determinado Espírito (Deus) que criara o mundo,
conforme nos era ensinado. Não foi uma coisa fácil abdicar de um “princípio”
indiscutível e paguei, por isso, um enorme preço, pois era o único ateu que eu
conhecia, e não demorei em vir a sofrer duras reprimendas da família e do
círculo social em que vivia. Mesmo assim, abdiquei do antigo pensar, “pus a
viola no saco” e fui tratar de tocá-la em outra freguesia.
Aos
quinze anos, quando entrei em contato com os iluministas, ou seja, o pensamento
expresso por Voltaire, Rousseau, Montesquieu e Diderot, dei-me conta de uma
outra “verdade” e passei a tocá-la com todo vigor os seus acordes. Agradava-me
ouvir de Voltaire, referindo-se à Santa Madre Igreja, a sua afirmação: “Esmagai
a infâmia”. Agradava-me ouvir, ainda desse mesmo senhor, uma afirmação que ele
tomara emprestado de um velho cura, cujos termos eram: “Só existirá felicidade
no mundo quando o último clérigo for enforcado nas tripas (vísceras) do último
nobre”. Agradava-me a sonoridade dos discursos humanistas de Jean-Jacques Rousseau,
particularmente seus conceitos experimentais sobre educação, expressos no livro
Emílio.
Também
me impressionava a talentosa proposta de Montesquieu, de uma República apoiada
em três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário, vivendo, segundo ele,
harmoniosamente. E mais ainda, agradava-me o refrão da Revolução Francesa, que
consistia em propor uma sociedade de igualdade, liberdade e fraternidade.
Quão
sonoramente agradável me fora a frase do Conde de Mirabeau, impedindo a
dissolução da Assembleia Constituinte, dizendo ao comandante da tropa real:
“Ide e dizei ao rei, vosso amo, que aqui estamos pela vontade do povo e daqui
não sairemos, senão pela força das baionetas”.
Caro
Diego, essas eram as canções que eu tocava, esplendidamente, em minha pobre viola.
Um ano depois, em 1958, tive a oportunidade de conhecer uma outra melodia, que
confrontava com aquela que eu estava cultuando. A nova canção dizia que
vivíamos num mundo capitalista; ou melhor, vivíamos dois mundos: um capitalista
decadente e um mundo socialista ascendente. Então, meu amigo, tive que “botar a
velha viola no saco” para, mais adiante, retirá-la e tocar novos acordes.
Entrei
no PCB, naquele mesmo ano, e por lá passei três anos, pois, em função da
influência da Revolução Cubana vitoriosa, novos cantares se ouviram. O velho
PCB defendia, inspirado pela contrarrevolução sediada em Moscou, que o caminho
para o socialismo era a via institucional e que podiam conviver, indefinidamente,
dois sistemas socioeconômicos distintos. Tratava-se de uma velha canção
mentirosa e desafinada; assim, mais uma vez, “botei minha viola no saco” e fui
cantar em outras paragens.
A
nova canção que assumi, que bem cabia no meu jovem espírito, era de inspiração
essencialmente cubana. Dessa forma, em 1962, depois de ter militado nas ligas
camponesas, fui, junto com outros camaradas, tentar estruturar um foco
guerrilheiro no norte do então Estado de Goiás, precisamente no município de
Dianópolis. Lá estive, com minha viola, durante um ano, ao som da rumba
caribenha, cultuando a guerrilha como instrumento revolucionário em si, sem me
dar conta de que o discurso continuava o mesmo: reforma agrária, reformas
estruturais, que nos adequassem à modernização do capitalismo e à luta pela soberania
nacional, bem ao gosto do verso: “Ou ficar a Pátria livre, ou morrer pelo
Brasil”.
Alvo
da repressão, e por outras causas, aquela experiência fracassou. Fomos
enquadrados na Lei de Segurança Nacional, em pleno governo democrático de João
Goulart. Tive que refazer as minhas reflexões e outra alternativa não tive
senão colocar, mais uma vez, “a viola no saco” e buscar cantar em outras plagas.
Foi
aí que conheci o trotskismo e eles tinham um discurso muito simples. Diziam: “A
Revolução Russa foi traída pelo senhor Josef Stalin e seus asseclas”. Passou-se
a ter um Estado Operário burocratizado. Tornava-se necessária a insurgência de
movimentos que regenerassem o presumido Estado Operário. E aí, nesse discurso
singelo, estariam explicadas todas as nossas desventuras políticas. Simples
assim.
Essa
era a nova melodia e a ela eu aderi, de malas e viola. Participei, ativamente, como
militante trotskista, chegando a ser eleito, em congresso nacional, membro do
Comitê Central do POR (de inspiração pousadista). O sectarismo desse grupo,
como de outros grupos trotskistas, chegavam às raias da completa insensatez,
além do discurso paupérrimo que eles mantinham e ainda mantêm, tendo como base
a falsificação da história, eivada de um funesto idealismo.
Durante
uma temporada e, através de longo processo de reflexão, mais uma vez, amigo
Diego, tive que “botar a viola no saco”. Não era o trotskismo a canção da
liberdade que eu tanto perseguia. Tratava-se de um barco furado, de uma falsa
porta de saída.
Foi
aí que encontrei o Movimento Comunista Internacionalista, liderado pelo velho
combatente Hermínio Sachetta, que me fez ver outras verdades. E elas consistiam
em compreender que a sobrevivência do capitalismo se explicava pela confluência
de duas forças contrarrevolucionárias. A primeira delas, era a direita
explícita, o imperialismo. A segunda grande força, de sustentação do
capitalismo, era o stalinismo, seja ele na sua forma ortodoxa, maoísta, kruchevista,
fidelista ou trotskista, em seus diversos matizes. Sem essas duas forças seria
impossível explicar a sobrevivência de um capitalismo exaurido. Mas, caro
Diego, não sou idólatra de figuras ou credos, estou disposto a colocar, mais
uma vez, “a viola no saco”, caso você me apresente um verdadeiro hino de
liberdade, que me inspire, mais uma vez, a afinar o meu velho instrumento, cuja
corda prima é o pensar, sem peias e, logo, sem limites; porém, dotado do
propósito de alcançar verdades pelo exercício permanente da dúvida.
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